Tomo a pena na mão para um
capítulo que, talvez, sintetize um pouco da distorção entre direitos e
obrigações, na mentalidade clássica do protestantismo de missão.
Conrado (nome fictício) era um
coroa gente boa. Gostava de conversar, contar piada e histórias da sua vida
empreendedora.
Seus pais eram espanhóis,
agricultores. Ele nascera no interior de SP, vindo para o Rio estudar no
tradicional colégio de nossa denominação. Por aqui ficou. Trabalhou muito. Mais
que o normal. Fez fortuna. Mas expôs sua família à distância e frieza nas
relações. Essa é, ao menos, a minha leitura.
Foi membro da Primeira Igreja do
Rio. Depois, da maior Igreja de nosso bairro. Sua empresa era bem sucedida. A
Igreja votava o alvo da campanha de missões. Ele esperava a arrecadação e,
então, do próprio bolso, passava um cheque dobrando o valor. Mantinha a
farmácia que atendia os necessitados da Igreja. Era membro de um importante
clube de cavalheiros, onde também fazia sua “ação social”. Era vigoroso. Forte
mesmo, do tipo que, nas obras do novo templo, manejava melhor do que eu uma picareta.
Isso aos oitenta anos.
Em nossa Igreja, era uma espécie
de padrinho. Socorria inúmeros necessitados. Socorreu a mim. Sem qualquer
alarde. Bancou boa parte da obra do novo templo. Isso significa, pelas minhas
contas, doações em torno de 150 mil reais. Financiava velórios, tratamentos dentários,
cestas básicas...
Sua empresa, já com a terceira
geração da família à frente, entrou em decadência. Testemunhei seu esforço para
sustentar o negócio, injetando na empresa, pela venda do patrimônio pessoal, algo
em torno de 2 milhões. Nada. A empresa afundou. Via-se como Jó. Orava como Jó.
Aquele homem afável e generoso
era linha dura com aquilo que consideramos “direitos trabalhistas”. Ele
reclamava de ter que dar férias a seus funcionários: “Eu vim da roça. Na roça,
sem trabalho, não há comida. O agricultor não tira férias”. Claro que
esbarramos nesse ponto algumas vezes. Eu o respeitava muito. E ele a mim.
Gostava do garoto que viu crescer na Igreja.
Vi aquele homem morrer num
hospital público. De maneira triste e solitária. Vi sua solidão no fim da vida.
Vi que somos, de verdade, quase nada.
A zeladora da Igreja era empregada
doméstica na casa dele. Daí veio minha maior surpresa.
Ela me procurou depois do
falecimento, sem saber o que a família dele, distantes que moravam no mesmo
bairro, faria com ela.
Eu imaginei que fossem demiti-la,
já que provavelmente se desfariam do casarão em que ele morava, num ponto nobre
do bairro.
Foi então que ela me revelou: em
quase 10 anos, nunca recebeu vale-transporte, hora-extra, férias ou décimo
terceiro. Não tinha nenhum direito trabalhista.
Perguntou-me o que deveria fazer
diante disso. Disseram-lhe que, se entrasse na Justiça, teria que esperar anos
para receber, já que havia muitos empregados da empresa dele na frente,
aguardando suas indenizações.
Eu disse a ela, claramente: “Diga
que vai procurar um advogado. Que você não era funcionária da empresa. Que
precisa dos seus direitos”. Calculamos, aproximadamente, quanto isso
significava. A soma a deixou feliz, já que daria para reformar a casa, que
estava num estado bastante degradado.
No primeiro dia após aquela
conversa, depois de muito se encorajar, Quitéria (nome fictício da zeladora)
teve coragem de dizer ao genro de Conrado, que tomava conta da casa: “Meu
pastor disse que eu tenho direitos”.
Acho que o homem ficou uma fera.
E teve o desplante de me telefonar.
O celular tocou. Não reconheci o
número. Atendi. Ele se identificou. Imediatamente se pôs a me questionar,
indagando o porquê da minha orientação. Sugeriu que eu poderia ter algum
interesse escuso.
Eu rebati prontamente. Ele
insistiu. Mostrou-me toda a folha de serviços prestados por Conrado ao “Reino
de Deus”. Perguntou se era justo fazer isso com um “obreiro tão valoroso”.
Eu me chateei. Claro. Tentei
explicar ao nobre interlocutor, um engenheiro da Petrobras e professor da
Escola Dominical de outra Igreja do bairro, que os direitos trabalhistas de Quitéria não tinham qualquer relação com a atuação do Conrado na Igreja.
Ele se enfureceu. Disse que era
um desrespeito com o falecido. Que era uma mancha em sua memória. Que “Deus me perdoasse”.
Não. Não o mandei para lugar
nenhum. Sabe quando você se arrepende de algo que deveria ter feito?
A ligação terminou.
Quitéria chegou domingo à Igreja
feliz da vida. O tal genro havia proposto a ela um acordo. Era 20% menor do que
o valor que calculamos. Mas ela estava satisfeita. Eu também.
O genro ficou realmente triste.
Era, para ele, de fato, uma ofensa. O que daria sentido a esse pensamento?
Fico pensando: será que Conrado,
ao dar a “Deus”, emprestava aos pobres?