Eu nunca tinha posto os pés numa unidade
prisional. Até hoje, não pus novamente.
Minha experiência religiosa no “Galpão
da Quinta” foi terrível. Fui até lá, conhecer a capelania prisional
desenvolvida por um missionário da denominação a que pertencia. Não tinha a
menor ideia do que iria encontrar. Nem das pessoas. Nem do ambiente. Nem do “trabalho
religioso”.
Atravessei a Quinta da Boa Vista
e dei de cara com uma rua estreita. Uma multidão se espremia na fila. Oito da
manhã. Dia de sol. Muito calor.
A multidão era de familiares dos
presos. Gente que veio visitar os internos. Gente que veio se cadastrar para
fazer as visitas.
A fachada do presídio me
assustou. Por que um versículo como aquele? Que mensagem o “sistema” desejava
transmitir?
Na “recepção”, uma pessoa ‘simpática’
me credenciou para entrar. Fui revistado. Entrei só com a Bíblia. Passei por
uma salinha apertada, cheia de armas, com um quadro negro na parede, onde se
registrava a contagem dos presos.
Segui para um enorme corredor. O
presídio Evaristo de Moraes é horrível. Quente. Insalubre.
No meio do corredor havia uma
pequena vala que circundava todo o galpão. Para ali afluía, imagino, parte do
esgoto. O piso era desnivelado para que todo líquido caísse na vala. O fedor
era insuportável. Ratos e baratas circulando.
Uma parede imensa do lado esquerdo.
Do lado direito, as ‘celas’. Grandes (in)cômodos onde se amontoavam pessoas.
Prisioneiros. A maioria absoluta de negros. Velhos. Jovens. Travestis. Espremiam-se
na grade, como se esperassem receber alguma coisa de quem passava. Era visível
que o presídio operava muito acima da (in)capacidade.
A pintura era antiga. As celas
escuras. Muito lixo acumulado. Cheiro de chorume misturado ao esgoto.
“O culto é na outra ala do
presídio. A ala dos evangélicos”, tranquilizava-me o missionário.
Atravessei um portão e a sensação
que tive foi a de sair do caos para, digamos, um pouco de ‘organização’. Apesar
de igualmente trancafiada e cheia, a “Ala dos Evangélicos” era diferente. As
paredes eram brancas. As celas organizadas. Ventiladores. Rádios. Quase silêncio.
As portas se abriram, numa visão quase apocalíptica. As filas se formaram. Era
hora do culto.
Caminhamos para um grande salão.
Era o ‘templo’. Aparelhagem de som melhor do que na minha igreja. Palco.
Púlpito. Instrumentos. Tudo pintado com muito cuidado. A imagem de um horizonte
atrás do batistério.
Logo adiante, uma salinha. Atrás
das cortinas. Conheci o pastor da ‘igreja do presídio’, que tinha, segundo ele,
naqueles dias, uns 450 membros. Ali se reuniam os responsáveis pelo culto. Conversavam
sobre a liturgia. O pregador daquela manhã era um pastor da minha denominação,
de uma pequena igreja da Zona Sul.
Antes do culto, um pequeno
lanche. Ofereceram-me um biscoito de nata: “É feito aqui mesmo”. Relutante, –
em que condições teria sido feito aquele biscoito? – aceitei. Comi só um. É bom
não abusar da proteção que Deus dá para os ‘homens sagrados que pregam nos
presídios’.
Começa o culto. Como pastor, fui
chamado para me sentar numa das cadeiras atrás do púlpito.
O dirigente, o pastor do presídio,
preso por homicídio, faz a abertura. Anuncia os convidados. Começa a música.
Estridente como nas igrejas. Som muito alto. Gente chorando. Todos cantando com
muita energia. Vários com as mãos na cabeça. Refrões repetidos como mantras.
Uma. Duas. Dez vezes. Muito choro!
Eu, que quase não sou ansioso,
comecei a ficar angustiado. Estava literalmente preso num culto pra lá de
carismático, com gente gritando muito, o som alto, e o ambiente hermeticamente fechado.
Quente. Com cheiro de mofo.
Acabou a música. O pastor da zona
sul começou a falar. Escolheu um texto de Josué. “Sê forte e corajoso”. Ele
repetia frases de efeito. E pedia que os ouvintes o fizessem. Eles gritavam a
uma voz. Impressionante! Pareciam ensaiados. Pareciam uma só pessoa.
A pregação de desenrolou assim...
Era como se o pregador controlasse a multidão. E a multidão empolgava o
pregador. Uma liga sinistra. Ensaiada. Impactante. Eu estava à beira de uma
crise nervosa.
Quando o pregador parecia
caminhar para o fim, alguém atravessou o salão com um balde plástico na mão.
Dentro do balde, pequenos papéis com nomes. Não era uma brincadeira de “Amigo
Oculto”. Eram os nomes dos que seriam libertos naquele dia. Fiquei sem entender
direito. Não tive coragem, ou condições, de perguntar.
A cada nome chamado, mais choro.
O “liberto” ia à frente, ficava ao lado do pastor. Umas seis pessoas ao todo.
Depois, outros foram encorajados a ir à frente: consagrar suas vidas, se entregar
para Jesus ou mesmo fazer um pedido específico de oração.
Adivinhe quem foi chamado para
fazer a oração? Quase congelei. Sair daquela cadeira foi um suplício. Ouvi a
minha voz no microfone e me perguntei: ‘O que estou fazendo?’. Tentei embarcar
no clima da festa. Mas estava nitidamente ‘fora de contexto’.
Terminada ‘minha parte’, o pastor
interno agradeceu a presença dos visitantes. Disse que voltaríamos outras
vezes. Fez a oração final, naquele clima. Encerrou o culto.
Era uma terça-feira. Dia da minha
denominação escalar o pregador do culto. Quarta era a Universal. Quinta,
Assembleia. Sexta, Deus é Amor.
Conversamos ainda um pouco.
Tentei compreender melhor tudo aquilo. O pastor me explicou como funcionavam as
coisas. Para um interno migrar para a Ala dos Evangélicos, a igreja do presídio
deveria declarar que o recebia. Seguia-se uma sabatina e o candidato assinava
um termo de concordância com as regras da Ala, que incluía, entre outras
coisas: oração a cada três horas – inclusive durante a madrugada, roupas
comportadas, sem palavrões, sem televisão, visita íntima só para casados no
papel, comportamento quase impecável. Havia ali uma travesti, com seios de
silicone que fazia questão de esconder. “Será um novo homem quando sair da
cadeia e puder retirar os seios”, repetia o pastor. Dividiam itens básicos –
sabonete, barbeadores, comida, roupas de cama. Revezavam-se na faxina. O
ambiente era, de fato, muito mais conservado do que as outras alas.
Permaneci no salão de cultos,
enquanto os internos voltavam às celas para a contagem. Quando os agentes
terminaram, fomos acompanhados para a saída. Passei pela capela católica. “Do
mesmo tamanho do nosso templo, mas quase sempre vazia”, disse o pastor. Era
hora também da entrega das quentinhas para o almoço. Carrinhos de supermercado
desfilando sobre a vala do esgoto, carregando as quentinhas. Muitas mãos
atravessando a grade para receber a comida.
Vi, ainda de longe, a luz do sol.
Senti-me aliviado.
Ao me deixar na Radial Oeste,
onde eu pegaria um ônibus para o Centro e, de lá outro para casa, o missionário
me disse: “Deixei seu nome no livro para retornar na próxima semana”. “Vamos
conversar”, respondi.
A conversa nunca se deu. Fugi do
presídio. Acho que a verdade me libertou.