terça-feira, 25 de novembro de 2014

Deus no presídio!













Eu nunca tinha posto os pés numa unidade prisional. Até hoje, não pus novamente.

Minha experiência religiosa no “Galpão da Quinta” foi terrível. Fui até lá, conhecer a capelania prisional desenvolvida por um missionário da denominação a que pertencia. Não tinha a menor ideia do que iria encontrar. Nem das pessoas. Nem do ambiente. Nem do “trabalho religioso”.

Atravessei a Quinta da Boa Vista e dei de cara com uma rua estreita. Uma multidão se espremia na fila. Oito da manhã. Dia de sol. Muito calor.

A multidão era de familiares dos presos. Gente que veio visitar os internos. Gente que veio se cadastrar para fazer as visitas.

A fachada do presídio me assustou. Por que um versículo como aquele? Que mensagem o “sistema” desejava transmitir?

Na “recepção”, uma pessoa ‘simpática’ me credenciou para entrar. Fui revistado. Entrei só com a Bíblia. Passei por uma salinha apertada, cheia de armas, com um quadro negro na parede, onde se registrava a contagem dos presos.

Segui para um enorme corredor. O presídio Evaristo de Moraes é horrível. Quente. Insalubre.

No meio do corredor havia uma pequena vala que circundava todo o galpão. Para ali afluía, imagino, parte do esgoto. O piso era desnivelado para que todo líquido caísse na vala. O fedor era insuportável. Ratos e baratas circulando.

Uma parede imensa do lado esquerdo. Do lado direito, as ‘celas’. Grandes (in)cômodos onde se amontoavam pessoas. Prisioneiros. A maioria absoluta de negros. Velhos. Jovens. Travestis. Espremiam-se na grade, como se esperassem receber alguma coisa de quem passava. Era visível que o presídio operava muito acima da (in)capacidade.

A pintura era antiga. As celas escuras. Muito lixo acumulado. Cheiro de chorume misturado ao esgoto.

“O culto é na outra ala do presídio. A ala dos evangélicos”, tranquilizava-me o missionário.

Atravessei um portão e a sensação que tive foi a de sair do caos para, digamos, um pouco de ‘organização’. Apesar de igualmente trancafiada e cheia, a “Ala dos Evangélicos” era diferente. As paredes eram brancas. As celas organizadas. Ventiladores. Rádios. Quase silêncio. As portas se abriram, numa visão quase apocalíptica. As filas se formaram. Era hora do culto.

Caminhamos para um grande salão. Era o ‘templo’. Aparelhagem de som melhor do que na minha igreja. Palco. Púlpito. Instrumentos. Tudo pintado com muito cuidado. A imagem de um horizonte atrás do batistério.

Logo adiante, uma salinha. Atrás das cortinas. Conheci o pastor da ‘igreja do presídio’, que tinha, segundo ele, naqueles dias, uns 450 membros. Ali se reuniam os responsáveis pelo culto. Conversavam sobre a liturgia. O pregador daquela manhã era um pastor da minha denominação, de uma pequena igreja da Zona Sul.

Antes do culto, um pequeno lanche. Ofereceram-me um biscoito de nata: “É feito aqui mesmo”. Relutante, – em que condições teria sido feito aquele biscoito? – aceitei. Comi só um. É bom não abusar da proteção que Deus dá para os ‘homens sagrados que pregam nos presídios’.

Começa o culto. Como pastor, fui chamado para me sentar numa das cadeiras atrás do púlpito.

O dirigente, o pastor do presídio, preso por homicídio, faz a abertura. Anuncia os convidados. Começa a música. Estridente como nas igrejas. Som muito alto. Gente chorando. Todos cantando com muita energia. Vários com as mãos na cabeça. Refrões repetidos como mantras. Uma. Duas. Dez vezes. Muito choro!

Eu, que quase não sou ansioso, comecei a ficar angustiado. Estava literalmente preso num culto pra lá de carismático, com gente gritando muito, o som alto, e o ambiente hermeticamente fechado. Quente. Com cheiro de mofo.

Acabou a música. O pastor da zona sul começou a falar. Escolheu um texto de Josué. “Sê forte e corajoso”. Ele repetia frases de efeito. E pedia que os ouvintes o fizessem. Eles gritavam a uma voz. Impressionante! Pareciam ensaiados. Pareciam uma só pessoa.

A pregação de desenrolou assim... Era como se o pregador controlasse a multidão. E a multidão empolgava o pregador. Uma liga sinistra. Ensaiada. Impactante. Eu estava à beira de uma crise nervosa.

Quando o pregador parecia caminhar para o fim, alguém atravessou o salão com um balde plástico na mão. Dentro do balde, pequenos papéis com nomes. Não era uma brincadeira de “Amigo Oculto”. Eram os nomes dos que seriam libertos naquele dia. Fiquei sem entender direito. Não tive coragem, ou condições, de perguntar.

A cada nome chamado, mais choro. O “liberto” ia à frente, ficava ao lado do pastor. Umas seis pessoas ao todo. Depois, outros foram encorajados a ir à frente: consagrar suas vidas, se entregar para Jesus ou mesmo fazer um pedido específico de oração.

Adivinhe quem foi chamado para fazer a oração? Quase congelei. Sair daquela cadeira foi um suplício. Ouvi a minha voz no microfone e me perguntei: ‘O que estou fazendo?’. Tentei embarcar no clima da festa. Mas estava nitidamente ‘fora de contexto’.

Terminada ‘minha parte’, o pastor interno agradeceu a presença dos visitantes. Disse que voltaríamos outras vezes. Fez a oração final, naquele clima. Encerrou o culto.

Era uma terça-feira. Dia da minha denominação escalar o pregador do culto. Quarta era a Universal. Quinta, Assembleia. Sexta, Deus é Amor.

Conversamos ainda um pouco. Tentei compreender melhor tudo aquilo. O pastor me explicou como funcionavam as coisas. Para um interno migrar para a Ala dos Evangélicos, a igreja do presídio deveria declarar que o recebia. Seguia-se uma sabatina e o candidato assinava um termo de concordância com as regras da Ala, que incluía, entre outras coisas: oração a cada três horas – inclusive durante a madrugada, roupas comportadas, sem palavrões, sem televisão, visita íntima só para casados no papel, comportamento quase impecável. Havia ali uma travesti, com seios de silicone que fazia questão de esconder. “Será um novo homem quando sair da cadeia e puder retirar os seios”, repetia o pastor. Dividiam itens básicos – sabonete, barbeadores, comida, roupas de cama. Revezavam-se na faxina. O ambiente era, de fato, muito mais conservado do que as outras alas.

Permaneci no salão de cultos, enquanto os internos voltavam às celas para a contagem. Quando os agentes terminaram, fomos acompanhados para a saída. Passei pela capela católica. “Do mesmo tamanho do nosso templo, mas quase sempre vazia”, disse o pastor. Era hora também da entrega das quentinhas para o almoço. Carrinhos de supermercado desfilando sobre a vala do esgoto, carregando as quentinhas. Muitas mãos atravessando a grade para receber a comida.

Vi, ainda de longe, a luz do sol. Senti-me aliviado.

Ao me deixar na Radial Oeste, onde eu pegaria um ônibus para o Centro e, de lá outro para casa, o missionário me disse: “Deixei seu nome no livro para retornar na próxima semana”. “Vamos conversar”, respondi.


A conversa nunca se deu. Fugi do presídio. Acho que a verdade me libertou.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

As tragédias explodem as certezas













Era fim de outubro, acho que de 2010... Tempo de um fim de semana especial da música na Igreja. A programação previa fóruns, debates, orquestra... Até que o inesperado lançou toda a nossa previsão para o espaço.

O telefone de alguém tocou. Estávamos no templo, com a turma toda da música, assistindo a um filme que nos proporcionaria a chance de discutir os embates de formalismo e informalismo, antigo e novo, pode e não-pode. Do outro lado da linha, a notícia: Tito morreu.

Tito era membro da Igreja. Tinha 22 anos. Neto de uma família bastante numerosa e ativa na comunidade. Trabalhava no transporte alternativo que fazia a travessia da favela mais armada do bairro. Uma das mais armadas do Rio.

Trabalhando na “Kombi”, Tito fez amigos no meio da “rapaziada do movimento”. Era bonito, forte, fazia sucesso com as meninas.

Aquela favela tinha uma UPP diferente – a Unidade de Propina Pacificadora. Dizia-se que toda semana a “patamo do comandante” buscava o “arrego”.

Num desses dias, Tito desfilava em seu carro, comprado com dinheiro do trabalho, na companhia de seus amigos: a rapaziada. Armados, andavam pelas ruas da favela. Num dia de azar, “bateram de frente” com a “patamo”. O esquema era todo mundo fingir que não viu, dar ré e seguir caminho. Mas...

O tiroteio começou sem que alguém seja capaz de dizer de onde. Tito, que não era “do movimento”, foi atingido. Dentro do carro. Só ele. Tiro de fuzil normalmente mata. Tito morreu.

Cheguei à clínica para onde foi levado seu corpo. Sua mãe, minha amiga de longa data, acariciava os pés frios, do corpo ensacado em cima de uma mesa de mármore. À porta daquela sala sinistra, duas adolescentes pranteavam. A mãe, missionária de uma denominação pentecostal, se questionava. Alternava entre o desespero do “ressuscita meu filho, Senhor” e a resignação.

Fui com o padrasto do falecido até a delegacia. Na garupa de sua moto. Sem capacete. Ao descermos, os PM’s nos abordaram. “Você sabe que ele era bandido, né?”. Na patamo, algumas marcas de tiros. Nenhum nos vidros.

Entramos na delegacia. O padrasto perguntou pelo carro. Estava financiado no nome da tia de Tito. O responsável mandou chamar os PM’s envolvidos na ocorrência. Deu-lhes uma bronca: “Era só um tiroteio. Agora tem carro e corpo. Que merda é essa?”. Silêncio. Entraram todos. Quando saíram, um dos “azuis” disse ao padrasto: “O carro está lá em cima. Busque lá e traga para ser periciado. Nós não vamos subir por que o clima não está bom”. Com meus botões, me perguntava: que situação é essa?

Fui na garupa da moto para a casa dos avós de Tito. O carro estava lá na porta. O para-brisas completamente perfurado. O chão ensanguentado. A mãe dele olhando para o carro. Seu corpo já estava no IML.

Fiquei com a família até a madrugada. Mais tarde, alguém me deixou em casa.

Foi-se o sábado.

Veio o domingo. Dia do sepultamento. Corpo na capela do cemitério. Nunca vi aquele cemitério tão lotado. Muitos jovens. Camisas com a foto de Tito. Tentei falar alguma coisa, mas chorava mais do que eles. Difícil. Subi numa pedra e de lá li o Salmo 23. Falei, acredito, ao vento. A comoção era generalizada.

Fizemos o sepultamento. Cancelamos o culto da manhã na Igreja. Estávamos quase todos ali. O culto da noite foi difícil. Falei pouco. Li o trecho em que Jesus diz: “Filhas de Jerusalém, não chorem por mim; chorem por vocês mesmas e por seus filhos! Pois chegará a hora em que vocês dirão: ‘Felizes as estéreis, os ventres que nunca geraram e os seios que nunca amamentaram!”.

A morte de Tito me deixou muito abalado. Fiz muitos funerais ao longo dos meus anos de pastorado. Mas aquele, com todos os seus ingredientes, com os jovens repetindo o refrão da música gospel preferida do falecido, com o frenesi, os gritos... Cenas que nunca sairão da minha cabeça. Pronto. Já estou ouvindo a música de novo!

Sábado passado voltei à Igreja. Uma jovem de 22 anos, que vi criança, morreu. Uma doença trágica ceifou sua vida em três meses. Abracei seu pai, que trabalhou comigo na igreja por anos, e chorei com ele. Não precisava falar nada. Não sou mais o pastor da Igreja...

Tito estava no lugar errado. Na hora errada. Em “más companhias”. Sua morte, portanto, “se explica”. A jovem de sábado não. Igreja-casa-faculdade... “Por que, Senhor?”, perguntava a avó. Ela me abraçou e disse: “Deus abandonou a gente, pastor”.

Uma das piores falácias do fundamentalismo é a pretensão de explicar a mente de Deus. A ideia matemática de que “tudo tem um propósito”. “Deus tem o controle de tudo”. “Por mais que eu não saiba, Ele tem o melhor”. “Ele a recolheu para si, evitou algo pior”. Ora. Convenhamos. Que merdas de explicações são essas?

Que explicação pode existir para uma tragédia assim? O que pode ser dito para um pai que enterra uma filha vitima de câncer? Na minha humilde opinião: o melhor é não dizer nada. Por mais que a comunidade, para manter a aparente coerência de sua pregação, peça uma resposta, o silêncio humilde e reverente diante do mistério absoluto da vida me parece a melhor saída. Chorar junto. Retomar a caminhada. Permitir que o amor fraterno ajude a curar as feridas. Não há muito o que se fazer.

Fiz o sepultamento de uma criança de dois anos. Ela caiu da escada e bateu a cabeça. A família não era “crente”. Fiz o sepultamento de um jovem de 27 anos. Caiu do “escadão do morro” e quebrou uma vértebra. Deixou um casal de filhos (7 e 4 anos). Seu pai morreu uma semana depois, vitima de um AVC. Sim... Fiz sepultamentos “comuns” também. Gente idosa, com “doença de gente idosa”.

A morte, talvez, seja a “etapa” mais difícil de superarmos. É aquela que nos traz à tona o quanto somos frágeis, pequenos, efêmeros, mesmo diante do nosso mundo de certezas.

Seja sincero. Por mais que se creia na “vida eterna”, que lá “em cima” existam ruas de ouro, que seja o lugar onde o choro cessa... Quem, nesse mundo de Deus, quer morrer?

Será que cremos mesmo? Não precisa responder. Acho que você não tem certeza.

Ou tem.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Há um "lado bom" na Igreja?














Alguém poderia me indagar sobre o “lado bom” da Igreja. Será que eu não o vejo?

Ora. Claro que vejo. Muito do que vivi na Igreja vai me acompanhar para sempre. É algo que me compõe.

Vivi ali muitas e diferentes emoções. Aprendi sobre Deus. Não o Deus da Doutrina, do testemunho, da catequese. Mas o Deus que não cabe nas linhas. Nas letras. É apenas captado pela emoção. Está em nós, apesar de nós. É aquilo que nos move adiante. Que nos completa e ultrapassa. Que nos segura, agita, incomoda, teima, age, reage, indigna. É a ternura, o afeto, o perdão, a reconciliação, o colo, o abraço, o beijo, o amor, o começo, o fim e o meio...

Como vi e vivi isso na Igreja!

Vi, apesar das dificuldades, vida comunitária. Tínhamos uma cisterna na Igreja. Todo verão era a mesma coisa: “Pastor, podemos pegar água na Igreja?”

Vi gente se ajudando para pagar enterro. Vi o templo antigo ser usado como capela mortuária. Vi senhoras da Igreja preparando café, bolo e biscoito para quem ia virar a noite no velório. Vi uma casa ser construída num terreno para uma moradora de rua com seus dois filhos. Vi vaquinha pra óculos. Vi cesta básica. Vi catadora de lata com alegria de “entregar sua oferta”. Vi crianças jogando bola. Vi crianças me abraçando. Vi velhinhos contando piadas. Vi gente em leito de hospital público, a quem fui visitar, me mostrando o que é coragem. Vi gente acreditando na cura. No milagre. No impossível. Até à última hora. Vi mulher dizendo “não” para o marido. Vi alcoólatra erguer a cabeça. Vi a fé na vida eterna. Vi solidariedade sem fim. Vi gente abrindo a porta de casa. Vi gente me emprestando o banheiro quando não tive água. Vi gente mais velha me chamando de senhor. Vi pobre ajudando rico. Vi adultos aprendendo a ler. Vi um pobre, negro, homossexual, HIV positivo, cadeirante deixar de ser analfabeto, ser acolhido como igual. Vi a força da Vida em ação.

Vi gente acreditar num garoto franzino e o ordenar pastor.

Vi gente me mandando um SMS ontem:

“Boa tarde, pastor! Depois que o senhor saiu da Ilha ficou metido. Não quer saber dos pobres. Desculpe-me por não ter ido à festa da Bia. Não deu mesmo. Pastor, hoje eu fiquei muito emocionada. Cantamos na Igreja uma música que o senhor cantava quando fazíamos o culto aqui em casa. Era tão bom. A gente morria de vergonha da casa, mas quando começava o culto a gente até esquecia. Me vieram tantas lembranças suas. O senhor foi muito importante para nós. Obrigada, por que se não fossem os cultos, nossa casa estaria um caco até hoje. Um abraço. Beijos da nossa família para o senhor e sua esposa. Deus proteja sua família. Amém.”

Hoje o texto é curto. A emoção é grande demais.

Hoje completo um ano distante do ministério pastoral. Envolvido por minhas reminiscências. Tentando entender o sentido de tudo isso.

Perguntando-me: para onde vou?

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Um especialista em demônios!










Eu tinha medo de histórias com possessos.

Na verdade, não acreditava que teria “poder espiritual” para expulsar um demônio.

Assim, sempre que surgia a “oportunidade” de um encontro como esses, chamava um casal de diáconos, amigos de longa data, e os “deixava” ir em meu lugar.

Certa vez, ainda nos meus tempos de seminarista, fui chamado às pressas para a casa de uma adolescente da Igreja. Ela estava quebrando tudo no quarto e, antes que o pai chegasse para tirar o demônio usando o cinto, a mãe pediu que eu fizesse alguma coisa.

Fiz uma oração mequetrefe e parti para o embate. Se algo desse errado, ao menos estaríamos apenas eu, a mãe, a possuída e o possuidor...  Não tinha muita gente para dar Ibope.

Cheguei a casa. Fui direto para o quarto da menina. Tava tudo uma zona mesmo. Ela se sentou no canto da cama e não me olhava. Eu pensei com meus botões: “Isso mesmo, capiroto. Fica aí no cantinho e nem me olha”. Chamei-a pelo nome. Ela se recusou a me olhar. Disse que em mim havia “luz” e que, portanto, era impossível me encarar. Fiquei ainda mais encorajado. Nunca tinha vivenciado algo assim. Não vivi de novo depois. Sem saber o que fazer: se tocava nela, se falava as palavras tradicionais ou se gritava, fiz apenas uma oração branda, calma e leve. Ao fim, ela estava mais serena. Não disse mais nada. Levantei-me e fui embora.

Convivi com aquela adolescente durante anos. Nunca comentei nada sobre aquele dia. Nem ela. Nem sua mãe.

Clotilde era um caso especial. Ela era habilidosa evangelista. Há anos lutava contra problemas psiquiátricos atribuídos à ação do tinhoso. Ela atribuía. A maioria das pessoas da Igreja também.
Era um tal de passar mal no fim do culto. Correria pra porta do templo, onde costumava ficar. Um monte de gente em cima. E ela, aflita, gritando que o diabo a estava levando. Um sofrimento que me angustiava.

A angústia era ainda maior por que eu, o pastor, deveria ter uma resposta. Uma solução. Deveria fazer uso da minha “autoridade espiritual” para livrar Clotilde daquilo. Sentia os olhares me cobrando.

Lá no morro tinha (tem) uma congregação de uma tradicional denominação pentecostal. O filho de Clotilde, Humberto, que também sofria de transtornos psiquiátricos – uma vez, inclusive, quase me agrediu no meio da rua – ora frequentava as Testemunhas de Jeová, ora os Mórmons, ora nossa Igreja, ora os pentecostais.

Humberto convocou a galera da “consagração” – o nome dado para a turma que faz campanha de jejum e oração – para uma batalha contra a “legião” que assolava sua mãe.

Deu em quê? Nada. Ou melhor. Domingo ela chegou à Igreja ainda mais transtornada. E o transtorno crescia...

Até que eu resolvi apelar. Pensei, pensei, pensei. Orei, orei, orei e me lembrei de um especialista. Uma espécie de GhostBuster. Um pastor pentecostal com quem meu irmão caçula teve uma aproximação e algumas “experiências”.

Liguei para ele, que prontamente me atendeu. Fomos até à casa de Clotilde. Indagamos – ou ele indagou? – por coisas enterradas, objetos consagrados, pessoas consagradas... Havia mitos sobre aquela família.

Egon – o pastor especialista – chamou Clotilde para o meio da roda. Pediu um pouco de óleo. Deram azeite mesmo. Numa colher. Ele orou. Consagrou o óleo. Ungiu Clotilde.

Aquela era ora do sinistro acontecer. Eu esperava que ela pulasse, espumasse, gritasse. Que alguma coisa, pelo amor de Deus, acontecesse. Era preciso me convencer das forças ocultas. Do bem e do mal.

Então... Nada! Não aconteceu nada. Egon terminou a oração e me disse que ela não estava possuída, mas oprimida. Acrescentou que “quem” estava ali tinha levado uma boa onda de choque e que ficaria distante por algum tempo.

Clotilde permaneceu exatamente como dantes. Ficamos nessa por anos.

Descobri, tempos depois, que o tal psiquiatra em que a levavam, na verdade, era uma emergência onde apenas buscavam novas receitas do velho calmante. E mais igrejas. Igrejas próximas. Igrejas distantes. E mais calmante. E Clotilde definhava...

Parou de ir à Igreja. Levávamos pão e vinho em sua casa para, de alguma forma, mantê-la integrada. Gente da Igreja a visitava com frequência.

Levei-a ao posto de saúde do bairro, na esperança de conseguir algo. Nem consulta foi possível marcar. A burocracia exigia um comprovante de residência no nome dela.

Não conseguimos reverter aquele quadro. Anos de oração. Vigílias. Pastores aos montes. Especialistas em demônios...

Aquela “batalha” apontava para nossa incapacidade de reagir aos que, talvez, fossem os verdadeiros problemas.

Clotilde era vítima de um machismo insuportável. Tinha, sim, sérios problemas de saúde mental. Problemas que nunca foram tratados com a devida seriedade. E tinha um casamento de aparência.

A irmã dela a levou para o Ceará, onde seria tratada por profissionais. Definhou ainda mais. E, por mais louco que pareça, morreu ano passado. Engasgada com cuscuz.

Fico pensando que, de alguma forma, Clotilde mantinha nossa necessidade de fantasiar.

E a gente gostava.


Ou não.