quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Ainda usa(ría)mos o tronco.



Hoje, enquanto olhava postagens no facebook, minha filha viu a foto de uma mãe negra com seu bebê no colo. ‘Que lindo papai!’, disse ela. ‘É uma representação de Jesus com Maria, filha.’ ‘Não, papai. Jesus é branco!’. E lá fui eu tentar explicar essa impossibilidade histórica tomada como verdade na Igreja, mesmo que banhada de racismo. Foi lá, na Igreja, que minha filha de 8 anos aprendeu que ‘Jesus tem olho azul’. Inclusive na Igreja em que fui pastor. Inclusive durante meu pastorado, por mais progressista que me julgasse.

Domingo passado visitei uma Igreja. Lá, ouvi o pastor dizer algo assim: ‘2015 foi um ano difícil. Crise econômica, recessão, desemprego. Mas nós não tememos nada, pois nosso patrão é Deus. Quem nos guarda é Deus. Quem nos sustenta é Deus’.

Era uma igreja de classe média alta. É bem possível que aquele pastor temesse, ao menos um pouco, se trabalhasse numa igreja de membresia empobrecida.

Há alguns anos, visitei o Acampamento Batista Carioca. É um sítio em Três Rios, no interior do Estado do Rio de Janeiro (https://www.youtube.com/watch?v=LZOWXzIuFpo). É um lugar agradável, com piscinas, campo de futebol, capela, dormitórios, muito verde...

Naquele sítio há algo que nos remete às páginas mais sombrias da História do Brasil. Um tronco utilizado para prender escravos. Possivelmente, houve naquele sítio, em algum momento do passado, negr@s escravizad@s.



Hoje, quando me lembro daquele tronco, me vem à mente a frase escrita nele: ‘Cristo, Verdade que Liberta’. É quando me sinto envergonhado de ter, um dia, olhado para aquilo como algo que se devesse valorizar.

O autor da inscrição provavelmente não fez por maldade. Eu também, quando valorizei aquilo, não o fiz de caso pensado, anulando um símbolo de morte. O que eu sabia, na ocasião, era que mais temível que a escravidão do corpo é a escravidão do espírito. Mais temível que morrer no tronco, seria morrer sem Cristo e ir para o Inferno.

É a essência do fanatismo religioso evangélico: a visão puritano-pietista de Deus como a única realidade. O único jeito de ver o mundo. A única explicação para tudo. A saída. A resposta. O sustento...

Em nome disso, tomamos como banal, trivial e até poético, anular o peso de dor, crueldade e carnificina, de um tronco usado para prender escrav@s. Onde pessoas sangravam. Agonizavam. Eram selvagemente torturadas. Mortas.

Usar aquele tronco como metáfora religiosa é, para além de alienante, tremendamente desumano.

Na escola, estudamos capítulos monstruosos da História com clareza. Ficamos indignados com a capacidade humana de fazer o mal. Sentimos dor na alma ao nos depararmos com a verdade incontestável de que o Cristianismo foi coautor de diversas empreitadas terríveis.

Mas, ainda assim, aquele tronco permanece lá. É, para mim, um sinal de que continuamos os mesmos.