Na verdade, não acreditava que
teria “poder espiritual” para expulsar um demônio.
Assim, sempre que surgia a “oportunidade”
de um encontro como esses, chamava um casal de diáconos, amigos de longa data,
e os “deixava” ir em meu lugar.
Certa vez, ainda nos meus tempos
de seminarista, fui chamado às pressas para a casa de uma adolescente da
Igreja. Ela estava quebrando tudo no quarto e, antes que o pai chegasse para
tirar o demônio usando o cinto, a mãe pediu que eu fizesse alguma coisa.
Fiz uma oração mequetrefe e parti
para o embate. Se algo desse errado, ao menos estaríamos apenas eu, a mãe, a
possuída e o possuidor... Não tinha
muita gente para dar Ibope.
Cheguei a casa. Fui direto para o
quarto da menina. Tava tudo uma zona mesmo. Ela se sentou no canto da cama e
não me olhava. Eu pensei com meus botões: “Isso mesmo, capiroto. Fica aí no
cantinho e nem me olha”. Chamei-a pelo nome. Ela se recusou a me olhar. Disse
que em mim havia “luz” e que, portanto, era impossível me encarar. Fiquei ainda
mais encorajado. Nunca tinha vivenciado algo assim. Não vivi de novo depois.
Sem saber o que fazer: se tocava nela, se falava as palavras tradicionais ou se
gritava, fiz apenas uma oração branda, calma e leve. Ao fim, ela estava mais serena.
Não disse mais nada. Levantei-me e fui embora.
Convivi com aquela adolescente
durante anos. Nunca comentei nada sobre aquele dia. Nem ela. Nem sua mãe.
Clotilde era um caso especial. Ela
era habilidosa evangelista. Há anos lutava contra problemas psiquiátricos
atribuídos à ação do tinhoso. Ela atribuía. A maioria das pessoas da Igreja
também.
Era um tal de passar mal no fim
do culto. Correria pra porta do templo, onde costumava ficar. Um monte de gente
em cima. E ela, aflita, gritando que o diabo a estava levando. Um sofrimento
que me angustiava.
A angústia era ainda maior por
que eu, o pastor, deveria ter uma resposta. Uma solução. Deveria fazer uso da
minha “autoridade espiritual” para livrar Clotilde daquilo. Sentia os olhares
me cobrando.
Lá no morro tinha (tem) uma
congregação de uma tradicional denominação pentecostal. O filho de Clotilde,
Humberto, que também sofria de transtornos psiquiátricos – uma vez, inclusive,
quase me agrediu no meio da rua – ora frequentava as Testemunhas de Jeová, ora
os Mórmons, ora nossa Igreja, ora os pentecostais.
Humberto convocou a galera da “consagração”
– o nome dado para a turma que faz campanha de jejum e oração – para uma
batalha contra a “legião” que assolava sua mãe.
Deu em quê? Nada. Ou melhor.
Domingo ela chegou à Igreja ainda mais transtornada. E o transtorno crescia...
Até que eu resolvi apelar.
Pensei, pensei, pensei. Orei, orei, orei e me lembrei de um especialista. Uma
espécie de GhostBuster. Um pastor pentecostal com quem meu irmão caçula teve
uma aproximação e algumas “experiências”.
Liguei para ele, que prontamente
me atendeu. Fomos até à casa de Clotilde. Indagamos – ou ele indagou? – por coisas
enterradas, objetos consagrados, pessoas consagradas... Havia mitos sobre
aquela família.
Egon – o pastor especialista –
chamou Clotilde para o meio da roda. Pediu um pouco de óleo. Deram azeite
mesmo. Numa colher. Ele orou. Consagrou o óleo. Ungiu Clotilde.
Aquela era ora do sinistro
acontecer. Eu esperava que ela pulasse, espumasse, gritasse. Que alguma coisa,
pelo amor de Deus, acontecesse. Era preciso me convencer das forças ocultas. Do
bem e do mal.
Então... Nada! Não aconteceu
nada. Egon terminou a oração e me disse que ela não estava possuída, mas
oprimida. Acrescentou que “quem” estava ali tinha levado uma boa onda de choque
e que ficaria distante por algum tempo.
Clotilde permaneceu exatamente
como dantes. Ficamos nessa por anos.
Descobri, tempos depois, que o
tal psiquiatra em que a levavam, na verdade, era uma emergência onde apenas
buscavam novas receitas do velho calmante. E mais igrejas. Igrejas próximas.
Igrejas distantes. E mais calmante. E Clotilde definhava...
Parou de ir à Igreja. Levávamos
pão e vinho em sua casa para, de alguma forma, mantê-la integrada. Gente da
Igreja a visitava com frequência.
Levei-a ao posto de saúde do
bairro, na esperança de conseguir algo. Nem consulta foi possível marcar. A
burocracia exigia um comprovante de residência no nome dela.
Não conseguimos reverter aquele
quadro. Anos de oração. Vigílias. Pastores aos montes. Especialistas em
demônios...
Aquela “batalha” apontava para
nossa incapacidade de reagir aos que, talvez, fossem os verdadeiros problemas.
Clotilde era vítima de um
machismo insuportável. Tinha, sim, sérios problemas de saúde mental. Problemas
que nunca foram tratados com a devida seriedade. E tinha um casamento de
aparência.
A irmã dela a levou para o Ceará,
onde seria tratada por profissionais. Definhou ainda mais. E, por mais louco
que pareça, morreu ano passado. Engasgada com cuscuz.
Fico pensando que, de alguma
forma, Clotilde mantinha nossa necessidade de fantasiar.
E a gente gostava.
Ou não.
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