segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Cuidado com o facão!
















Eu sempre curti a ideia de cuidar das pessoas. Acho que desempenhei esse papel na família e, depois, na Igreja. Particularmente, agradava-me muito a sensação de “poder fazer algo por alguém” enquanto pastor. Os cristianismos produziram muitas mensagens. A que mais gosto é a da solidariedade.

Quando assumi o pastorado, ainda utilizávamos o antigo templo para os cultos. Estávamos construindo outro, quatro vezes maior. Como a igreja arrecadava aproximadamente R$ 5 mil/mês, a grana era curta para tocar a construção. O novo salão de cultos ficava no segundo andar. Ainda faltavam o piso dos dois andares, os banheiros, o telhado estava com muitos problemas, a fachada seria uma grande e custosa vidraça, não tínhamos equipamento de som para dar conta do novo espaço.

Apesar de tudo isso, utilizar o templo “novo” parecia um desafio interessante. Tratei de fazer uma campanha para construirmos a rampa de acesso. A membresia era formada por muitos idosos e um cadeirante. Ou fazíamos a rampa, ou ficávamos apertados no pequeno salão.

O verão de 2007 foi de muitas chuvas. Um temporal derrubou o acesso da casa de uma das senhoras da Igreja. Esse acesso era uma pequena escada velha de madeira, sem alguns degraus, que dava num corredor que desabou, entre a porta da casa e os dutos da Petrobras. O marido dela estava sem trabalho. Era alcoólatra. Ela tomava conta de crianças para sustentar os 3 filhos adolescentes.  Como manter esse trabalho tendo que escalar o barranco para entrar em casa?

Claro que aquela situação me desafiou. É claro, também, que aquele desafio exigiria dinheiro. Pois bem. Como se pode pedir, de uma Igreja humilde, dinheiro para construir a rampa e dinheiro para reformar aquela casa?

No domingo seguinte, depois de ter visitado a família, juntei os abastados da Igreja, eram uns cinco, e narrei com dramaticidade o ocorrido. Expliquei a situação e fiz, num chute, um orçamento para a reforma da casa. Naquele mês, a campanha para a rampa seria interrompida. Eles se comprometeram comigo a cooperar. Mas ainda faltava algo: onde a família ficaria enquanto a reforma se desenrolasse? Tínhamos três salas no subsolo do templo antigo. Dois banheiros. Uma cozinha. Decidimos que a família ficaria hospedada lá.

Juntamos uma grana que não seria suficiente. Contei com a boa vontade de muita gente. Um irmão me levou à Baixada para comprar pisos. Pesquisamos e choramos muito na compra de outros materiais, em diversos lugares diferentes. A ideia crescer, resolvemos fazer naquele apertado corredor: um novo banheiro – o velho estava desabando – e a cozinha. A escada de acesso seria de alvenaria, para o beco da favela, como a maioria das outras casas. Assim, a antiga cozinha se transformaria num quarto. E a casa teria dois.

Faltava apenas um detalhe: a mão de obra. Igreja de morro, na maioria das vezes, têm pedreiros. A nossa tinha alguns. Um deles topou fazer pelo preço que poderíamos pagar. O marido desempregado seria o servente. Um dos diáconos, que não pôde cooperar com dinheiro, era hábil armador de ferragens. Era um verão escaldante naquele descampado da Petrobras, a única área possível para fazer massa e concreto.

Eu realmente acreditei que a parte mais difícil estava vencida. Não tinha a menor ideia do que era o “sistema” de água e esgoto da casa. Havia um segundo andar, que pertencia a outro morador, cuja tubulação era dividida com a casa que reformávamos. Havia ainda uma fossa, que ninguém sabia que era fossa até o pedreiro bater nela com a cavadeira e ver o esgoto jorrar. Jorrar muito. Jorrar longe.

Refazer aquele corredor, levantando um barranco, com tanta coisa enterrada, foi algo quase sobrenatural. Até hoje não entendo como aquele pedreiro conseguiu. Refeito o corredor, chegamos ao desafio do banheiro. Era preciso fazer uma pequena laje para a caixa d’água. Depois veio a cozinha, a escada nova...

Ao longo desse tempo – quase um mês – a família morou na Igreja. Você se lembra que ele era alcoólatra? E fumante! O cheiro do cigarro chegava no templo. E eu sambava para dar conta de acalmar a turma mais radical, que via como um absurdo o indivíduo fumar na Igreja.

Pensa que acabou? Um dos filhos da senhora se encantou com o gazofilácio (aquela caixa, normalmente de madeira, onde o povo deposita as ofertas e dízimos). Os tesoureiros recolhiam o dízimo apenas no domingo à noite. As ofertas da manhã passavam o dia inteiro lá. Percebendo isso, o garoto arranjou uma pinça e, virando o gazofilácio, arrecadava seu próprio dízimo. Demorou até percebermos, pois havia gente na Igreja que depositava o envelope vazio mesmo. Vai saber porquê...

Numa tarde de domingo, o diácono que ajudava na armação das ferragens – um dos tesoureiros – abriu a porta do templo e ouviu uma correria. Gazofilácio tombado. Pinça no chão. O garoto estava escondido atrás da grande mesa de madeira em que celebrávamos a Ceia. Assustado, disse que havia um mascarado roubando a Igreja, e que tinha sido ameaçado se contasse.

Aquela história era demais para mim. Fiquei tão irritado que decidi pressionar o garoto. Chamei-o para conversar. Ele contou a mesma versão do mascarado. Fiquei ainda mais chateado. Disse que iria chamar a polícia. Tentei pressioná-lo.

Bom. O pai dele ficou mais enfurecido que eu. Depois de beber algumas, chegou à Igreja com um facão. Aos berros, ameaçava me matar. Como eu poderia ter acusado o filho dele?
O pedreiro e o diácono, que estavam trabalhando na casa dele, mais íntimos, portanto, o demoveram da ideia do esfaqueamento. Ufa...


Concluímos a obra. A família voltou para casa. Satisfeitos e agradecidos (ou não?). O caso do gazofilácio ficou por isso mesmo... A rampa ainda demoraria algum tempo para sair. Aquele verão se foi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você é livre para expressar a sua opinião... E ela me interessa!