Jones (eu precisava achar um nome
fictício que não tivesse xará na Igreja) adentrou o templo descalço. Vestia uma
bermuda encardida e usava sua habitual camisa gola polo, que não conseguia esconder
a circunferência abdominal. Do alto de seus quase 1,90m, com o sorriso de
poucos dentes inteiros, cabelos brancos partidos ao meio, o olhar se agitava.
Sentou-se no penúltimo banco, do lado esquerdo. A bermuda revelava quase metade
do seu glúteo, arrancando risadas dxs adolescentes ao fundo.
Há algo de fantástico nas
pequenas igrejas de comunidade: a sua enorme capacidade de acolher os loucos. Jones
era mais um deles. Houve época em que eu queria pendurar uma placa no portão: “Não
há mais vagas para loucos!”.
Terminado o culto, enquanto
despedia as pessoas, aquela figura surgiu e me apertou a mão. “Pastor, que
horas é a missa durante a semana?”. Informei o dia do Culto de Oração, quase
como quem esperava que ele não viesse.
Quarta-feira. Jones foi o
primeiro a chegar. Antes da noite. Entrou no salão de cultos, apagou todas as
luzes, entrelaçou as mãos naquele simbólico gesto de oração e permaneceu em
absoluto silêncio. Eu o vi ali, sozinho, compenetrado. De calça e chinelo. E
resolvi deixá-lo curtir o momento. Essa cena se repetiu diversas vezes. Ele
chegava cedinho e transformava o templo numa espécie de “Santíssimo”.
Começou a frequentar a EBD.
Falava bem. Às vezes ria e falava alto. Às vezes, muito alto. Não se contentava com as respostas simples.
Disse estar “encostado pelo INSS” em função de problemas psiquiátricos. Aguardava
a aposentadoria definitiva. Era bancário.
Jones conheceu a Igreja através
de Clotilde (fictício, sem xará, lembra?!). Clotilde era uma espécie de
maníaco-depressiva. Constantemente tinha crises histéricas. Mas era muito hábil
no evangelismo. Com meia dúzia de folhetos, percorria os bares ao redor da
Igreja e trazia gente. Falaremos sobre ela qualquer dia desses...
Solano (mais um fictício) tinha
uns 45 anos. Cheirava cocaína há 30. Tinha perdido vários empregos. Precisava,
como ele mesmo dizia, encontrar um jeito de não perder a segunda família.
Numa quarta chuvosa, estávamos no
grupo de oração dos homens. Era tradição dividir o povo para orar tendo o gênero
como critério. Jones e Solano estavam conosco. O grupo era bem idoso. Dois de
80. Um de 70. Outros de 50, 60... Jones tinha 53. E eu 20 e alguma coisa.
Solano contou um pouco da sua
história. Chorou. Tinha uma filha adolescente. Era mais alto que Jones. Moreno.
Magérrimo. Motorista. A sexta-feira era seu terror.
Essa era a hora de um bom bate
papo. De abrir o coração e falar das necessidades, ou mesmo só agradecer. Jones
pediu a palavra. “Pastor, eu quero pedir oração. Vou sair daqui, ir para casa,
pegar R$ 50,00 com minha mãe e comer uma puta!”. Fez-se silêncio.
Eu não sabia o que dizer. Ele
retomou: “Eu não sei o que acontece. É como uma droga!”. Repetia, enquanto
arranhava o braço, alegando que o desejo estava em seu sangue. E estava mesmo.
Como no de quase todos os homens ali. Mas ele, por ser ele, falava.
Todos me olhavam, aguardando que
tirasse um coelho de minha cartola pastoral. Sem ter o que fazer ou dizer, mas me
sentindo na obrigação de fazê-lo, pedi que todos ficassem de pé. Chamei Jones e
Solano para o centro da roda. Impus as mãos em suas cabeças e fiz a oração mais
escalafobética que consegui. Pronto. Seja o que Deus quiser.
Acho que Jones comeu a mulher.
Solano talvez lute contra a dependência até hoje.
Acho que minha oração tinha uma
intenção positiva. O grupo ali tinha. Queríamos, realmente, poder fazer algo
por aqueles homens. Mas nossa leitura das causas e nossas ações eram
ineficazes.
Jones frequentou a Igreja durante
um tempo. Conversou comigo e me fez diversas confissões. Coisas que nem aqui
posso falar e que irão em minha mente para o além. Se houver além.
Certa vez me interrompeu, em
plena pregação, levantando a mão como um aluno que quer fazer uma pergunta. Com
a Bíblia aberta num rei qualquer, indagou: “Pastor, me explica esse negócio de
matar criança que está escrito aqui?”.
Seria melhor que tivesse dito que
ia para casa comer duas putas...
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