Caminhei às pressas para o
fundamentalismo. Eu e ele nos dávamos muito bem. Aprendi a ser obediente. O
fundamentalismo me dizia o que pensar, falar, sentir, comer, tocar, ouvir...
Todo o meu mundo, toda a minha realidade, tudo o que chegava a mim passava por
esse filtro.
Se nenhum tipo de experiência
poderia ser vivida fora das regras ‘fundamentais’, eu cheguei ao ponto da
estagnação. Era necessário apenas sofisticar os conceitos. Dar-lhe um bonito
embrulho, que posasse bem nas pregações. Que tivesse mais ares de verdade do
que já tinha. Que fosse convincente. Tudo me era tão claro que eu, honestamente,
me perguntava: como pode alguém não crer nisso?
Até que veio o pastorado... Aí,
amigx, fudeu a porra toda!
O processo de sucessão pastoral
que vivi na Igreja teve contornos bizarros. Éramos uma Igreja pequena, entre a
favela e os remediados, no alto do morro, com cento e poucos membros... O
salário não era atraente. Mesmo assim tivemos 13 candidatos. Gente mais velha,
mais experiente, uma professora dum Seminário de Niterói – que tocava piano e
tudo... E eu. Solteiro. Boa parte dos jovens da Igreja me queriam como pastor.
Fui examinado pela Comissão. Respondi a um questionário ridículo.
A Igreja estava sem pastor. Mas
eu estava lá. Inventaram um cargo de evangelista. Incumbiram-me de pregar
quando não houvesse nenhum “candidato” presente. E de dirigir todos os cultos.
Num dos domingos, lembro-me de
ter falado sobre o episódio em que Jesus transforma a água em vinho. Falei dos
usos e significados do vinho. Algo mais ou menos como: alegria, remédio e
louvor. Simples e piedoso assim: se acabaram essas coisas, Jesus faz de novo.
Ainda que seja da água...
Quando terminei de pregar, o
vice-presidente da Igreja, que não me queria como pastor, pediu a palavra. “Eu
gosto muito do Leonardo. Mas hoje ele falou sobre vinho, vinho e VINHO. E não
falou nada sobre Jesus. Irmãos, isso é um perigo!”. Minha vontade era
desaparecer.
Meu fundamentalismo não tinha
resposta para aquilo. Como não teria, quando vi os movimentos sinistros de
promoção de “candidatos”. Como não teria para a secretária que apontava um nome
na cédula para os membros analfabetos escolherem no dia da votação. Como não
teria para o abandono que sofri depois de ter sido escolhido pastor. Mas eu
ainda precisava acreditar naquilo...
Veio o dia do meu concílio. Fui
aprovado, ordenado e empossado, com o compromisso de me casar o mais rápido
possível. Assim o fiz.
Tão logo iniciei o ministério
pastoral, meu castelo de cartas desabou. De que forma seria possível conquistar
a ala mais velha da membresia, que sustentava economicamente a Igreja, sem
abrir mão do que era, então, importante para mim? Foi um desespero. Solitário
desespero.
Na semana seguinte à minha posse,
um casal influente abandonou o barco. Não poderiam me admitir como pastor. E
olha que eu era BEM fundamentalista. Fui “encorajado” a visitá-los, a fim de
convencê-los a ficar. Não tive sucesso. Minha primeira derrota. Ou não.
Fiz treinamentos para líderes.
Tentei motivar as pessoas. Renovar a música, o ensino... Puxei, forte, quase
sozinho, aquele fardo morro acima. Havia um templo em construção. Pouca gente.
Muita obra. Muita responsabilidade para um garoto de 23 anos.
Como pastor recém ordenado, fui
recebido na Associação local de Igrejas. Deram-me um cargo. Aceitei fazer parte
da Comissão responsável por reestruturar o trabalho da Associação. Era mais um
espaço onde poderia ‘desfilar meus talentos’. Receber elogios. Tentar convencer
alguns a me ajudarem na Igreja.
Mas minha relação com o
fundamentalismo estava em risco. Não foi nenhuma leitura que provocou o
primeiro furo naquela represa. Foi a dura e simples realidade.
Numa bela tarde de sol – e que
sol! – recebi no meu gabinete – um cubículo de 2x2m, com inúmeros equipamentos
guardados por ser a única sala cuja porta se podia trancar – uma senhora viúva,
acho que tinha seus 40 e poucos, mãe de 4 filhas – o filho e o marido morreram
por armas de fogo. Aflita, muito aflita, tinha um pedido para me fazer. Confessou-me
que sua filha de 16 anos estava grávida. ‘O senhor vai expulsá-la da Igreja?’ A
pergunta dela me cortou a alma. Eu – e a Igreja que pastoreava – éramos indagados:
vão expulsar? Ora, que tipo de mensagem eu transmitia em minhas pregações? Que
tipo de Igreja éramos nós? Sem consultar ninguém, olhei nos olhos dela,
marejados, e disse: ‘De forma alguma. Como vamos deixar vocês sozinhas, numa
hora como essa?’. Até hoje me orgulho daquela resposta. E de tudo o que ela
significou para mim.
Fui para o púlpito e fiz defesas
calorosas do amor e da acolhida. Quando a notícia se espalhou, as principais
lideranças tiveram receio de me cobrar um posicionamento. Eu ainda tinha “capital
político”.
Nasceu um menino. Naquela casa só
de mulheres negras, o pequeno chegou trazendo alegria. Tive o imenso prazer de
apresentá-lo na Igreja. Não me lembro, mas tenho quase certeza de que o pai não
estava presente. A avó, a mãe, as tias... E eu com a criança nos braços.
No verão seguinte, recebi o
convite para falar no Retiro de Carnaval da Juventude da maior Igreja da minha
denominação naquele bairro. Eram uns 160 jovens. O vice-presidente daquela
Igreja estava lá. Compartilhei a experiência daquela adolescente que foi
acolhida como ser humano. Imaginei que aqueles jovens puderam sentir a mesma
alegria que eu.
Dois meses depois, fui com o
pastor daquela grande Igreja para uma reunião do Conselho da Denominação. De
carona, no carro dele, estava também o vice-presidente, que esteve conosco nos
dias de Carnaval. O pastor me perguntou
o que eu havia achado do retiro. Falei coisas boas. Perguntei pela reação da
juventude. Só havia, segundo ele, um problema: eu não poderia ter compartilhado
a experiência da adolescente grávida. ‘Você agora me arranjou um problema.
Quando um caso semelhante acontecer, vão mencionar a sua história’. ‘E qual o
problema, pastor? Quantos jovens fazem sexo na Igreja, que a gente nem sabe?’ –
indaguei. Ele, com voz de autoridade, respondeu: ‘Se fazem, eu não sei. Mas se
a barriga cresce, todos sabem’. Tentei acalmar minha alma. O que era aquilo?
Eu sabia de um fato que talvez
pudesse me ajudar na argumentação. Naquela grande Igreja, um antigo líder havia
perdido seu posto. Por alguma razão, resolveu acionar a Igreja e o pastor na
Justiça, requerendo de volta o cargo, que lhe foi devolvido num acordo judicial.
Ironicamente perguntei: ‘Ora, mas e o caso de fulano, que acionou a Igreja na
Justiça e continua como membro?’. ‘Você não sabe que o Estatuto do Idoso o
protege? Poderíamos sofrer dano pior!’ – que resposta cínica. Minha ironia
insistiu: ‘Mas pastor, não importa mais obedecer a Deus do que aos homens?’. ‘Então
insista nesse caminho, jovem. Sua Igreja vai virar um cabaré!’. ‘Se virar,
pastor, eu serei uma das dançarinas!’. Fim da discussão.
Acredite.
São fatos reais.
Tudo em nome de Jesus.
Ah... Depois dessas coisas, ainda
continuei fundamentalista. Menos, mas ainda um pouco. O cabaré ainda estava em
construção.
Leonardo, o que isto significa pra você, eu gostei de ler. O que causou dor, parece-me, agora foi parido. Romper com a tradição, dói. Mas manter o fundamento exige cuidado. Canta-se do Tom (Jobim) em 'Wave': "Da primeira vez era a cidade. Da segunda o cais e a eternidade". Repare que há sempre uma desculpa (alter) egocêntrica. E "enquanto a noite vem nos envolver" o surpreendente amor vai construindo os cabarés em fundamento deixado pelos 'desaconselhados denominacionais'. E "agora (que) eu já sei" e você também sabe "da onda que se ergueu...", só precisamos saber qual foi a estrela descontada do 'céu de Abrão' que "esquecemos de contar". Então, fica me devendo esta pra próxima, pois não será possível "ser feliz sozinho". Fundamental o amor. É mesmo.
ResponderExcluirSim. O amor me fez dar o ponto final no fundamentalismo.
ResponderExcluirObrigado, "Anônimo".
Obrigado, caro autor, por escrever esse relato. Realmente, várias vezes há muito mais amor, compreensão, sinceridade, acolhimento e humanidade em um cabaré do que numa igreja. E, portanto, muito mais teologia e vida.
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