Era fim de outubro, acho que de
2010... Tempo de um fim de semana especial da música na Igreja. A programação
previa fóruns, debates, orquestra... Até que o inesperado lançou toda a nossa
previsão para o espaço.
O telefone de alguém tocou.
Estávamos no templo, com a turma toda da música, assistindo a um filme que nos
proporcionaria a chance de discutir os embates de formalismo e informalismo,
antigo e novo, pode e não-pode. Do outro lado da linha, a notícia: Tito morreu.
Tito era membro da Igreja. Tinha
22 anos. Neto de uma família bastante numerosa e ativa na comunidade.
Trabalhava no transporte alternativo que fazia a travessia da favela mais
armada do bairro. Uma das mais armadas do Rio.
Trabalhando na “Kombi”, Tito fez
amigos no meio da “rapaziada do movimento”. Era bonito, forte, fazia sucesso
com as meninas.
Aquela favela tinha uma UPP
diferente – a Unidade de Propina Pacificadora. Dizia-se que toda semana a “patamo
do comandante” buscava o “arrego”.
Num desses dias, Tito desfilava em
seu carro, comprado com dinheiro do trabalho, na companhia de seus amigos: a
rapaziada. Armados, andavam pelas ruas da favela. Num dia de azar, “bateram de
frente” com a “patamo”. O esquema era todo mundo fingir que não viu, dar ré e
seguir caminho. Mas...
O tiroteio começou sem que alguém
seja capaz de dizer de onde. Tito, que não era “do movimento”, foi atingido.
Dentro do carro. Só ele. Tiro de fuzil normalmente mata. Tito morreu.
Cheguei à clínica para onde foi
levado seu corpo. Sua mãe, minha amiga de longa data, acariciava os pés frios,
do corpo ensacado em cima de uma mesa de mármore. À porta daquela sala
sinistra, duas adolescentes pranteavam. A mãe, missionária de uma denominação
pentecostal, se questionava. Alternava entre o desespero do “ressuscita meu
filho, Senhor” e a resignação.
Fui com o padrasto do falecido
até a delegacia. Na garupa de sua moto. Sem capacete. Ao descermos, os PM’s nos
abordaram. “Você sabe que ele era bandido, né?”. Na patamo, algumas marcas de
tiros. Nenhum nos vidros.
Entramos na delegacia. O padrasto
perguntou pelo carro. Estava financiado no nome da tia de Tito. O responsável
mandou chamar os PM’s envolvidos na ocorrência. Deu-lhes uma bronca: “Era só um
tiroteio. Agora tem carro e corpo. Que merda é essa?”. Silêncio. Entraram
todos. Quando saíram, um dos “azuis” disse ao padrasto: “O carro está lá em
cima. Busque lá e traga para ser periciado. Nós não vamos subir por que o clima
não está bom”. Com meus botões, me perguntava: que situação é essa?
Fui na garupa da moto para a casa
dos avós de Tito. O carro estava lá na porta. O para-brisas completamente
perfurado. O chão ensanguentado. A mãe dele olhando para o carro. Seu corpo já
estava no IML.
Fiquei com a família até a
madrugada. Mais tarde, alguém me deixou em casa.
Foi-se o sábado.
Veio o domingo. Dia do
sepultamento. Corpo na capela do cemitério. Nunca vi aquele cemitério tão
lotado. Muitos jovens. Camisas com a foto de Tito. Tentei falar alguma coisa,
mas chorava mais do que eles. Difícil. Subi numa pedra e de lá li o Salmo 23.
Falei, acredito, ao vento. A comoção era generalizada.
Fizemos o sepultamento.
Cancelamos o culto da manhã na Igreja. Estávamos quase todos ali. O culto da
noite foi difícil. Falei pouco. Li o trecho em que Jesus diz: “Filhas de
Jerusalém, não chorem por mim; chorem por vocês mesmas e por seus filhos! Pois
chegará a hora em que vocês dirão: ‘Felizes as estéreis, os ventres que nunca
geraram e os seios que nunca amamentaram!”.
A morte de Tito me deixou muito
abalado. Fiz muitos funerais ao longo dos meus anos de pastorado. Mas aquele,
com todos os seus ingredientes, com os jovens repetindo o refrão da música
gospel preferida do falecido, com o frenesi, os gritos... Cenas que nunca
sairão da minha cabeça. Pronto. Já estou ouvindo a música de novo!
Sábado passado voltei à Igreja.
Uma jovem de 22 anos, que vi criança, morreu. Uma doença trágica ceifou sua
vida em três meses. Abracei seu pai, que trabalhou comigo na igreja por anos, e
chorei com ele. Não precisava falar nada. Não sou mais o pastor da Igreja...
Tito estava no lugar errado. Na
hora errada. Em “más companhias”. Sua morte, portanto, “se explica”. A jovem de
sábado não. Igreja-casa-faculdade... “Por que, Senhor?”, perguntava a avó. Ela
me abraçou e disse: “Deus abandonou a gente, pastor”.
Uma das piores falácias do
fundamentalismo é a pretensão de explicar a mente de Deus. A ideia matemática
de que “tudo tem um propósito”. “Deus tem o controle de tudo”. “Por mais que eu
não saiba, Ele tem o melhor”. “Ele a recolheu para si, evitou algo pior”. Ora.
Convenhamos. Que merdas de explicações são essas?
Que explicação pode existir para
uma tragédia assim? O que pode ser dito para um pai que enterra uma filha
vitima de câncer? Na minha humilde opinião: o melhor é não dizer nada. Por mais
que a comunidade, para manter a aparente coerência de sua pregação, peça uma
resposta, o silêncio humilde e reverente diante do mistério absoluto da vida me
parece a melhor saída. Chorar junto. Retomar a caminhada. Permitir que o amor
fraterno ajude a curar as feridas. Não há muito o que se fazer.
Fiz o sepultamento de uma criança
de dois anos. Ela caiu da escada e bateu a cabeça. A família não era “crente”.
Fiz o sepultamento de um jovem de 27 anos. Caiu do “escadão do morro” e quebrou
uma vértebra. Deixou um casal de filhos (7 e 4 anos). Seu pai morreu uma semana
depois, vitima de um AVC. Sim... Fiz sepultamentos “comuns” também. Gente
idosa, com “doença de gente idosa”.
A morte, talvez, seja a “etapa”
mais difícil de superarmos. É aquela que nos traz à tona o quanto somos
frágeis, pequenos, efêmeros, mesmo diante do nosso mundo de certezas.
Seja sincero. Por mais que se
creia na “vida eterna”, que lá “em cima” existam ruas de ouro, que seja o lugar
onde o choro cessa... Quem, nesse mundo de Deus, quer morrer?
Será que cremos mesmo? Não
precisa responder. Acho que você não tem certeza.
Ou tem.
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A fé é feita de incertezas e perguntas. E de esperança que respostas existam...
ResponderExcluirEsse blog é muito bom e esse texto é maravilhoso!
ResponderExcluir"Uma das piores falácias do fundamentalismo é a pretensão de explicar a mente de Deus. A ideia matemática de que “tudo tem um propósito”. “Deus tem o controle de tudo”. "