segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Senhor é Deus. O resto é Baal (ou Diabo, se preferir...)


Corria o ano de 1998. Eu tinha de 16 para 17 anos. Recém convertido. Ávido por aprender. Desejoso de agradar à liderança da Igreja onde servia. Capaz de devorar informações. Leitor voraz da Bíblia. Professor da Escola Dominical.

Um grupo de nossa Igreja foi visitar uma outra Igreja, no sul do Estado do Rio. O pastor de lá era um avivalista. Alguém da mesma denominação, mas mais identificado com os movimentos de santidade, oração e despertamento evangelical.

Sua Igreja era a maior da cidade, com um grande templo em construção. Ele eventualmente pregava em nossa Igreja em “Conferências Evangelísticas”. Era negro, alto, magro, de oratória excelente, culto, carismático e afetuoso.

Fomos até lá conhecer seu trabalho e ouvir um pouco de suas experiências. E foi justamente uma delas que me marcou de forma profunda.

Estávamos sentados nos bancos do templo. Aquele pastor dividiu conosco algo que vivenciara no último mês. Havia um jovem na igreja, recém chegado, neto da Mãe de Santo mais famosa da cidade. Tinha se convertido a Cristo e enfrentava uma forte perseguição na família, pois seria, na linha de sucessão, um futuro Pai de Santo. Ele e sua família moravam atrás do terreiro de candomblé. Inclusive sua avó. Cientes da imensa batalha espiritual que enfrentavam, o pastor convocou uma campanha de oração na Igreja. Os membros se dividiam em horários fixos de oração, de maneira que havia sempre alguém orando por aquele jovem, 24h por dia.

Ao fim da segunda semana de oração, aquele jovem deu seu testemunho na Igreja. No culto de domingo à noite, com o templo repleto de pessoas, narrou com maestria o que vivera. Durante a semana anterior, o terreiro de sua avó comemorava a festa de um santo. O jovem, cheio de fervor espiritual, se trancou em seu quarto e permaneceu em oração, enquanto os tambores tocavam. De repente, uma confusão toma conta do terreiro, ele ouve pessoas correndo, gritando, jarros se quebrando e os tambores emudecidos. Sem saber o que acontecia, agarrou-se ainda mais à oração. Passados alguns instantes, levantou-se e foi ver sua avó. O terreiro estava revirado. Os objetos e imagens de culto, quebrados. A idosa no chão, triste.

                - Vó, o que houve? Perguntou o rapaz.

                - Homens de branco entraram aqui e destruíram tudo!

Essa foi a senha para a Igreja se colocar de pé e adorar! ‘Glória a Deus! Aleluia! Os anjos do Senhor destruíram o local de culto à Satanás!’. O testemunho do rapaz estava completo. Sua avó ‘ainda não estava na Igreja, mas não demoraria para que se convertesse...’.

Eu anotei todos os detalhes daquela história. Ao chegarmos ao Rio, meu pastor me pediu que preparasse um texto, narrando a história, para ser publicado no boletim da Igreja.

Como dito, aquela história me impactou. Foi um degrau a mais na minha escalada fundamentalista. Ela e diversos outros ingredientes me tornavam cada vez mais capaz de enxergar a minha fé como a única verdade no mundo.

O grupo de jovens que eu liderava fazia dois cultos semanais ‘ao ar livre’ – nome que damos aos cultos feitos em local público, com caixas de som e instrumentos. Terças à noite e domingos à tarde. No largo do morro, em frente à Associação de Moradores.

Aquele largo era também o local onde a garotada do morro jogava futebol e queimada. Costumávamos dizer que era a queimada do pecado: gays contra lésbicas. Era, então, o local ideal para se ‘pregar a Palavra’.

E eu fazia. Partia para cima das outras crenças, declarando que nosso Deus era muito maior do que ‘aquele que monta no cavalo e mata o dragão’. Deus estava conosco, pois antes não tínhamos recursos, agora tínhamos caixas de som, amplificador, guitarra, baixo, microfones...

Por diversas vezes ofendi a fé das pessoas. O comportamento. O modo de vida. Fazia achando que Deus estava comigo. Fazia por que isso me dava status de ‘ousado pregador da Palavra’. Fazia pedindo a Deus que ‘olhasse as ameaças deles e capacitasse os seus servos para proclamarem a Palavra com toda a intrepidez’.

Ouvi, diversas vezes na Igreja, o texto de Elias e os Profetas de Baal – 1 Reis 18,17-40:

E sucedeu que, vendo Acabe a Elias, disse-lhe: És tu o perturbador de Israel?
Então disse ele: Eu não tenho perturbado a Israel, mas tu e a casa de teu pai, porque deixastes os mandamentos do Senhor, e seguistes a Baalim.
Agora, pois, manda reunir-se a mim todo o Israel no monte Carmelo; como também os quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal, e os quatrocentos profetas de Aserá, que comem da mesa de Jezabel.
Então Acabe convocou todos os filhos de Israel; e reuniu os profetas no monte Carmelo.
Então Elias se chegou a todo o povo, e disse: Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se o Senhor é Deus, segui-o, e se Baal, segui-o. Porém o povo nada lhe respondeu.
Então disse Elias ao povo: Só eu fiquei por profeta do Senhor, e os profetas de Baal são quatrocentos e cinqüenta homens.
Dêem-se-nos, pois, dois bezerros, e eles escolham para si um dos bezerros, e o dividam em pedaços, e o ponham sobre a lenha, porém não lhe coloquem fogo, e eu prepararei o outro bezerro, e o porei sobre a lenha, e não lhe colocarei fogo.
Então invocai o nome do vosso deus, e eu invocarei o nome do Senhor; e há de ser que o deus que responder por meio de fogo esse será Deus. E todo o povo respondeu, dizendo: É boa esta palavra.
E disse Elias aos profetas de Baal: Escolhei para vós um dos bezerros, e preparai-o primeiro, porque sois muitos, e invocai o nome do vosso deus, e não lhe ponhais fogo.
E tomaram o bezerro que lhes dera, e o prepararam; e invocaram o nome de Baal, desde a manhã até ao meio-dia, dizendo: Ah! Baal, responde-nos! Porém nem havia voz, nem quem respondesse; e saltavam sobre o altar que tinham feito.
E sucedeu que ao meio-dia Elias zombava deles e dizia: Clamai em altas vozes, porque ele é um deus; pode ser que esteja falando, ou que tenha alguma coisa que fazer, ou que intente alguma viagem; talvez esteja dormindo, e despertará.
E eles clamavam em altas vozes, e se retalhavam com facas e com lancetas, conforme ao seu costume, até derramarem sangue sobre si.
E sucedeu que, passado o meio-dia, profetizaram eles, até a hora de se oferecer o sacrifício da tarde; porém não houve voz, nem resposta, nem atenção alguma.
Então Elias disse a todo o povo: Chegai-vos a mim. E todo o povo se chegou a ele; e restaurou o altar do Senhor, que estava quebrado.
E Elias tomou doze pedras, conforme ao número das tribos dos filhos de Jacó, ao qual veio a palavra do Senhor, dizendo: Israel será o teu nome.
E com aquelas pedras edificou o altar em nome do Senhor; depois fez um rego em redor do altar, segundo a largura de duas medidas de semente.
Então armou a lenha, e dividiu o bezerro em pedaços, e o pôs sobre a lenha.
E disse: Enchei de água quatro cântaros, e derramai-a sobre o holocausto e sobre a lenha. E disse: Fazei-o segunda vez; e o fizeram segunda vez. Disse ainda: Fazei-o terceira vez; e o fizeram terceira vez;
De maneira que a água corria ao redor do altar; e até o rego ele encheu de água.
Sucedeu que, no momento de ser oferecido o sacrifício da tarde, o profeta Elias se aproximou, e disse: Ó Senhor Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, manifeste-se hoje que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo, e que conforme à tua palavra fiz todas estas coisas.
Responde-me, Senhor, responde-me, para que este povo conheça que tu és o Senhor Deus, e que tu fizeste voltar o seu coração.
Então caiu fogo do Senhor, e consumiu o holocausto, e a lenha, e as pedras, e o pó, e ainda lambeu a água que estava no rego.
O que vendo todo o povo, caíram sobre os seus rostos, e disseram: Só o Senhor é Deus! Só o Senhor é Deus!
E Elias lhes disse: Lançai mão dos profetas de Baal, que nenhum deles escape. E lançaram mão deles; e Elias os fez descer ao ribeiro de Quisom, e ali os matou.

Ouvi esse texto para aprender quem é Deus e qual o destino dos inimigos dele. Só o Senhor (Javé) é Deus. O resto é Baal – o Diabo. Adultos, jovens, adolescentes e crianças são ensinados assim. É raro, MUITO RARO, EXCEÇÃO, alguma Igreja fazer diferente. 



Veja como é simples entender como se constroem as associações entre Baal e qualquer outra divindade ou panteão, sobretudo aqueles de matriz africana.

Essas são características elementares do fundamentalismo que nós, evangélicos brasileiros, herdamos dos missionários do Sul dos Estados Unidos. É consequência direta do ‘Destino Manifesto’, e, portanto, elemento constitutivo da nossa visão de mundo.

Entende por que terreiros e imagens são destruídas? É, em última análise, muito ‘simples’ saber por que uma menina ‘de branco’ leva uma pedrada na cabeça.

Qualquer desvio dessa certeza – Deus (o Deus ‘fundamentalista’) é o Senhor, o resto é Diabo – é visto como falta de fé, fraqueza espiritual, tentação maligna ou apostasia. Não há diálogo.

Foi muito bom para mim, fora do ambiente de Igreja, aprender que Baal era o Deus cananeu da fertilidade. Era ele quem, pela chuva, fecundava a terra - Astarote. Por isso, seus cultos eram cheios de rituais sexuais, com prostitutas e orgias. Por isso o Velho Testamento está tão cheio de proibições ao culto a Baal. Israel fazia aos montes...

Era bom demais, trazia chuva e comida, todo mundo fazia, mas só Javé é Deus, beleza? Qualquer semelhança com nossos dias é mera coincidência...

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