quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Ainda discutindo homossexualidades...


Neste tempo da minha vida, não me imaginava mais discutindo questões relativas à população LGBTT. Para mim, seu direito é inalienável e sua dignidade não pode ser questionada.

No entanto, conversando com um amigo evangélico, percebo que ainda há muito o que ser feito. E, por vezes, acredito que nossa geração é responsável por misturas esquizofrênicas... Ao mesmo tempo em que mergulhamos na ciência e na tecnologia, usamos parâmetros considerados universais e absolutos para julgar algo como ‘o amor’. Loucura, né?

Recebi desse amigo uma pequena lista de perguntas. Não sei se ela é de sua lavra ou de outrem. Já está na minha ‘caixa de entrada’ há 30 dias. Não respondi antes por preguiça mesmo...

Hoje tive um pequeno refresco e me dei ao luxo de gastá-lo tentando responder às perguntas.

Compartilho com você. Se tiver paciência e coragem, leia e opine. Se não, deixe pra lá.


1.                  Desde quando você acredita que o casamento gay é algo para ser celebrado?

Celebro o casamento gay do mesmo modo como celebro as mulheres que conquistaram seus direitos ou os negros que são livres – ainda que ambos permaneçam diariamente lutando para serem respeitados.

Celebrar o casamento gay é entender que o outro, diferente de mim, tem os mesmos direitos que eu. Se prezo pela justiça e pela igualdade, não me resta outro caminho.


A série de perguntas abaixo se referem à Bíblia. Pretendo respondê-las em bloco.


2.                  Quais versículos da Bíblia te levaram a mudar de ideia?
3.                  Como você argumentaria, a partir da Escritura, que a atividade sexual entre duas pessoas do mesmo sexo é uma bênção a ser celebrada?
4.                  Quais versos você usaria para mostrar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo pode representar adequadamente Cristo e a igreja?
5.                   Você acredita que Jesus não teria problemas com comportamento homossexual consensual entre adultos em um relacionamento comprometido?
6.                  Se sim, por que Ele reafirmou a definição de Gênesis de que o casamento é entre um homem e uma mulher?
7.                  Quando Jesus falou contra a porneia, quais pecados você acha que ele estava proibindo?
8.                  Se algum comportamento homossexual é aceitável, como você entende a “mudança” pecaminosa que Paulo destaca em Romanos 1?
9.                  Você acredita que passagens como 1 Coríntios 6.9 e Apocalipse 21.8 ensinam que a imoralidade sexual pode te afastar do céu?
10.              A quais pecados sexuais você pensa que essas passagens se referem?

A primeira noção que precisamos desconstruir é a de que existe um ‘livro’ chamado ‘Bíblia’, como se a ela fosse possível ser determinado um autor ou mesmo um conteúdo. O que conhecemos e chamamos de ‘Bíblia’ é a reunião de 69 livros diversos, para os evangélicos, escrito por autores diversos, em diversas épocas. Esses livros, ao longo do tempo, sofreram diversos tipos de intervenção. Não há sequer um único desses livros com uma linha que seja que se possa chamar de ‘original’. Todos foram copiados, compilados, plasmados, interpolados, revisados e agrupados de maneira tal a corresponder às exigências políticas de um determinado grupo, num determinado período da História.

Isso significa que a ‘Bíblia’ é fruto da experiência humana, marcada por aspectos culturais de cada um dos livros que a compõe e editada ao longo dos anos. Isso para não falar das traduções...

É estranho pensar que eu possa utilizar como imperativo ético um livro como o do Levítico. Ele condena relações sexuais entre um homem e uma mulher menstruada, proíbe comer carne de porco, camarão, usar roupa com dois tipos de tecidos diferentes, manda matar feiticeiras... Ou Deuteronômio, que determina a morte de filhos desobedientes.

A respeito de Jesus, o que pode ser historicamente comprovado é muito pouco. Era um homem da Galileia, analfabeto, monoglota e líder carismático. Seu movimento teve curta duração, mas os ensinos atribuídos a ele se espalharam por uma série de razões diferentes. A partir do que se pode saber de seus discursos, o que é muito pouco, diversas comunidades se organizaram e, à sua moda, moldaram a imagem e o ensino de Jesus. Por isso, temos quatro evangelhos na Bíblia. Eles têm marcas distintas. Além desses, muitos outros foram escritos, mas considerados indignos de fazer parte do ‘canon’ – o conjunto de livros considerados referências da ‘inspiração divina’. Qual critério foi utilizado? Por que quatro e não outros? Quantos dos ‘outros’ estão presentes nos quatro ou nos demais livros do chamado ‘Novo Testamento’?

Duvido muito que Deus tenha ‘descido dos céus’ num determinado momento e indicado aos ‘redatores’ os livros que deveriam fazer parte da ‘Bíblia’. Portanto, acredito no que já disse: todas as escolhas são cultural e historicamente determinadas.

Já Paulo, um importante nome do ‘Novo Testamento’, a quem se atribui popularmente a autoria de treze livros, é outra figura disputada. De sua ‘Carta aos Romanos’ se usa absurdamente o capítulo 1, onde ele consagraria a ira de Deus sobre os ‘homossexuais’. Seria muito trabalhoso discorrer aqui sobre a origem do termo ‘homossexualidade’ e a difícil correlação entre ele e palavras do ‘grego paulino’. É muito mais simples a pergunta: seguimos Paulo no séc. XXI? Mulheres são submissas aos homens? Temos a poligamia aceitável para aqueles que não são líderes na Igreja? A escravidão é algo tolerável?

Não. Não acredito no céu. Desculpa se te magoei. Creio, hoje, – por que amanhã posso pensar diferente – que, como energia que somos, nos transformamos ao morrer. Portanto, não há qualquer razão para eu imaginar que ‘Deus Pai’ estabeleceu uma ‘Lei’ segundo a qual o pecador deve morrer e que, por essa ‘Lei’, ele entregou seu Filho-Jesus para morrer em nosso lugar. Se Ele pôde mudar a Lei para que Jesus pudesse morrer por todos, poderia simplesmente ter nos considerado perdoados, sem que fosse necessário entregar Jesus nas mãos dos carrascos romanos.

11.              Quando você pensa na longa história da igreja e sua reprovação quase universal da atividade homossexual, qual parte da Bíblia você entendeu e Agostinho, Calvino e Lutero não entenderam?

Agostinho vivia numa sociedade machista, patriarcal, assassina e desigual. Ele usou a ‘Bíblia’ para condenar isso? Calvino mandou enforcar, Lutero mandou matar... Pelo visto, eles não entenderam muitas partes da ‘Bíblia’. E entenderam muito bem diversas outras...

A história da Igreja – ou das Igrejas – é marcada por sangue. ‘Em nome de Jesus’ muita gente morreu. E continua morrendo. Eu decidi me livrar desses crimes.

12.              Quais argumentos você usaria para explicar para os cristãos da África, Ásia e América do Sul que o entendimento deles sobre a homossexualidade é biblicamente incorreto e o seu novo entendimento não é condicionado pela cultura?

Qualquer entendimento é condicionado pela cultura. No caso dos ‘cristãos de África, Ásia e América do Sul’, a cultura deles é esmagada constantemente pelo ‘Deus Ocidental Estadunidense’ da ‘Bíblia’.

13.              Você acredita que Hillary Clinton e Barack Obama, entre outros políticos, foram motivados por arrogância e preconceito quando, por quase todas as suas vidas, até pouco tempo atrás, definiram o casamento como o relacionamento pactual entre um homem e uma mulher?

Hillary e Obama, como ‘bons políticos’, querem uma coisa só: votos. Se for preciso dizer que o Sol gira em torno da Terra, dirão.

14.               Você pensa que crianças se sairão melhor com uma mãe e um pai?

Crianças, como nós adultos, precisam de amor e respeito. Isso, às vezes, vêm de pai e mãe. Outras, só de pai, ou só de mãe. Ou de tio, tia, avô, avó, madrinha... Ou de dois pais. Ou de duas mães.

15.              Se não, qual pesquisa você apresentaria para apoiar essa conclusão?

A mesma pesquisa que diz que ‘pai e mãe’ em casa são garantia de sucesso dos filhos.

16.              Se sim, a igreja ou o estado tem algum papel em promover ou privilegiar as condições para que as crianças tenham uma mãe e um pai?

Os deveres do Estado estão definidos na Constituição Brasileira. Os direitos fundamentais dos indivíduos também: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. O Estado não legisla sobre subjetividades... As Igrejas têm liberdade para construir suas doutrinas, desde que não firam esses direitos fundamentais.

17.              O propósito e o fim do casamento apontam para algo maior do que a realização emocional e sexual de um adulto?

Ou ‘um adulto e uma adulta’? Ou dois adultos? Ou duas adultas?

O casamento deve ter o propósito e o fim que o casal quiser determinar. Acredito que não exista receita pronta.  

18.              Como você define casamento?

Pergunta difícil. Hoje, eu definiria como a união de duas pessoas com o desejo de partilhar a vida e o amor.

19.              Você acredita que parentes próximos deveriam poder se casar?

O que são parentes próximos? Estamos falando dos valores da cultura ocidental? Não vejo como irmãos que cresceram juntos possam sentir mútua atração sexual. No entanto, se sentirem, quem sou eu para julgar a dignidade dessa relação?

20.              O casamento deveria ser limitado a apenas duas pessoas?

Em termos civis e legais, acredito que sim. Mas isso pode mudar, de acordo com a necessidade e as práticas culturais.

21.              Com base em quê, se há alguma, você impediria adultos em consentimento, com qualquer grau de parentesco ou em qualquer número, de se casarem?

Não posso impedir alguém de exercitar sua liberdade, quando ela não fere meus direitos fundamentais.

22.              Deveria haver um requisito mínimo de idade para se obter uma licença de casamento?

Do ponto de vista legal, a maioridade. Hoje, 18 anos.

23.             Igualdade implica que qualquer um que deseje se casar possa ter qualquer tipo de relacionamento definido como casamento?
24.              Se não, por que não?

Igualdade significa poder conceituar o que é casamento. Esse conceito mudou ao longo da história e é diferente em outros lugares do mundo. Portanto, culturalmente determinado. Hoje, no Brasil, avançamos no sentido de abranger como casamento as relações homoafetivas monogâmicas.

25.              Irmãos e irmãs em Cristo que discordam da prática homossexual deveriam poder exercitar suas crenças religiosas sem medo ou punição, retribuição ou coerção?

Desde que o façam em privado, sem estimular o ódio ou restringir direitos fundamentais da população.

26.              Você vai defender seu amigo cristão quando seu empregos, seu crédito, sua reputação e sua liberdade forem ameaçados por conta dessa questão?

Isso é algo tão distante e fantasioso que nem preciso me dar ao trabalho de responder. Agora, é preciso defender quem, como homossexual, tem seu emprego, crédito, reputação, liberdade e até vida ameaçados por sua orientação sexual.

27.              Você vai se posicionar contra o bullying e a opressão de todos os tipos, quer seja contra gays e lésbicas ou contra evangélicos e católicos?

É preciso ser terminantemente contrário a qualquer iniciativa que coloque em risco os direitos fundamentais. Bem diferente, por exemplo, de quando bruxas e outros eram mandados para a fogueira pelos ‘cristãos’.

28.              Como a igreja evangélica tem falhado frequentemente em levar a sério os divórcios não bíblicos e outros pecados, quais passos você vai tomar para se certificar que os casamentos gays sejam saudáveis e de acordo com os princípios da Escritura?

Quem constrói a saúde de um casamento, hetero ou homossexual, é o casal.

29.              Casais gays em relacionamentos abertos devem ser sujeitos à disciplina eclesiástica?

Essa é a pergunta dos hipócritas de plantão nas Igrejas. Quantos são os casais heteros em relação veladamente aberta que sofrem disciplina em suas igrejas? Depende do dízimo, né?

30.              É pecado pessoas LGBT se envolverem em atividades sexuais fora do casamento?

Pecado é reduzir a sexualidade ao ato sexual. Pecado é negar a natureza de seu corpo e seus desejos. Pecado é forçar alguém, constranger, obrigar, humilhar, submeter...

31.              O que as igrejas abertas e inclusivas farão para falar profeticamente contra divórcio, fornicação, pornografia e adultério, quando estes forem descobertos?

Não faço a mínima ideia. Não sou parte de igreja inclusiva. Mas, como cidadão, ficaria feliz se as igrejas usassem seus recursos para defender o respeito aos direitos fundamentais: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, ao invés de se preocupar com a privacidade alheia.

32.              Se “o amor vence”, como você define amor?
33.              Quais versos você usa para estabelecer essa definição?

O amor nem sempre vence...

34.              Como a obediência aos mandamentos de Deus molda nosso entendimento de amor?

Deveria ser algo assim: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”.

35.              Você acredita que é possível amar alguém e discordar de decisões importantes que ela tome?

Claro que sim.

36.              Se apoiar o casamento gay é uma mudança para você, mais alguma outra coisa mudou no seu entendimento da fé?

Quase tudo. Graças a Deus.

37.              Enquanto evangélico, como o seu apoio ao casamento gay te ajudou a se tornar mais apaixonado pelos distintivos evangélicos tradicionais, como foco no novo nascimento, o sacrifício substitutivo de Cristo na cruz, a confiabilidade total da Bíblia e a necessidade urgente de evangelizar os perdidos?

Esses ‘distintivos tradicionais’ são um resumo do ‘The Fundamentals’, série de livros publicados no início do séc. XX, nos EUA, como ‘testemunho da verdade’ contra as mudanças do mundo. É daí que surge o termo ‘fundamentalismo’. Preciso falar mais?

38.              Quais igrejas abertas e inclusivas você apontaria como lugares onde pessoas estão sendo convertidas ao Cristianismo ortodoxo, pecadores estão sendo alertados do julgamento e chamados ao arrependimento e missionários estão sendo enviados para plantar igrejas entre os povos não alcançados?

Igrejas inclusivas e cristianismo ortodoxo são termos contraditórios. Acredito que missionários são aqueles que se entendem com uma missão: em nossa terra ou em outras, mas desejosos de servir à humanidade na luta por justiça, igualdade e direitos.

39.              Você espera estar mais comprometido com a igreja, com Cristo e com as Escritura nos próximos anos?

Não. Igrejas são o que sempre foram: lugares de opressão de uns e enriquecimento de outros. Cristo não é sinônimo de Jesus. Escrituras me servem como documento histórico, ora como fonte de inspiração, por sua beleza e profundidade, ora como objeto de crítica por sua agressividade e violência.

40.              Quando Paulo exorta “os que tais coisas praticam” e aqueles que “aprovam os que assim procedem”, quais pecados você pensa que ele tinha em mente?

Já falei de Paulo... Pouco, mas acho que o suficiente.

Quero apenas terminar com algumas provocações.

Você, cristão ou cristã, que tanto se preocupa com a vida sexual alheia, usa seus órgãos sexuais com a ‘finalidade designada por Deus’? Pensando em termos bem objetivos, Deus criou o sexo para a reprodução. Logo:

1.      Métodos contraceptivos são pecaminosos, não são naturais;
2.      Sexo oral é pecado – boca não foi feita para isso;
3.      Beijar mamilos ou qualquer outra parte do corpo é pecado – Deus criou cada parte do corpo para um fim específico;
4.      Sexo anal é um pecado inominável.


A quem se interessar:


O excelente documentário: “Por que a Bíblia me diz assim” - https://www.youtube.com/watch?v=E1E-wbF-UAc

Filmes:
Milk – a voz da igualdade.

Filadelfia.

2 comentários:

  1. Isso não pode ficar restrito a um post de blog. Precisa virar um opúsculo. Sensacional.

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  2. A sátira de Juvenal não poupa os afeminados, são textos até cronologicamente próximos do que Paulo escreveu, e provavelmente (já que a sátira era um gênero urbano e moralizante) esse ranço era consensual em Roma. Provavelmente Paulo reproduziu por escrito costumes de sua gente, e por suas cartas serem consideradas canônicas, existe um povo que hoje trata essas cartas como se fossem um "manual de instruções". Uma pena.

    Léo, vou linkar seu blog no meu, okay?
    Saudações Giovani Gomes

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