Acho que foi em 2008. Não sei ao
certo. Começamos na Igreja um projeto que visava criar um segundo turno escolar
para crianças e adolescentes. As igrejas possuem uma estrutura física mal
aproveitada. Espaços que permanecem fechados ao longo de quase toda a semana. A
ideia era usar isso. E, claro, gente.
Juntamos uma galera. Conversamos.
A turma topou. Muito por conta da minha empolgação, acreditando em mais uma
ideia para ‘salvar o mundo’. A Igreja acreditou em várias. Em algumas, mais do
que eu. Ainda que existisse uma distância entre o que eu propunha e a maneira
como a liderança enxergava a ideia, não posso reclamar de falta de apoio.
Tínhamos um orçamento muito
limitado. Algo em torno de seis mil reais. Um terço dele pagava meu salário
como pastor. Decidimos dedicar outro terço do orçamento para o projeto e o
restante, o outro terço, pagaria as demais despesas da Igreja. Era andar na
corda bamba.
Fizemos uma campanha de
divulgação na comunidade. Iniciamos no segundo semestre. Houve mais de sessenta
inscrições. Recebemos a todos. Gratuitamente.
Fomos até o Mercadão de Madureira
comprar material escolar. Compramos aos montes. Coisa boa...
O corpo de voluntários era
limitado. Eu me desdobrava para coordenar e cuidar da turma de adolescentes.
Compramos uma mesa de totó usada. Recebíamos doações para o café da manhã e o
lanche da tarde. E lutávamos muito para manter a turma sob algum controle
durante as sete horas que passavam conosco. Uma turma de 8h00 às 11h30. Outra
de 13h30 às 17h00.
A turma fazia o dever de casa. Montamos
uma pequena biblioteca com livros doados. Criávamos outros exercícios e
buscávamos caminhos para complementar as falhas do sistema público de educação.
Segundas, quartas e sextas cantávamos os hinos. Nacional, Independência,
República e Bandeira. Era a hora dos voluntários mais antigos sentirem-se
saudosos dos seus tempos de escola. Eu, inclusive. Tentamos, com os
adolescentes, trabalhar o significado das palavras ‘desconhecidas’ dos hinos.
Tentamos...
Havia meninos e meninas no quarto
ano que não sabiam ler. Havia um menino negro que levava o mesmo caderno para a
escola e para o projeto. Em branco. Completamente. No fim do ano.
Foi um semestre intenso.
Voluntários se desdobrando. Eu me sentindo completamente esgotado. Mas muito
empolgado. Procurando formas e parcerias para aquele trabalho.
As salas de aula do novo templo
ainda estavam em obras. Não havia mesas e cadeiras adequadas. A iluminação era
precária. Mas as crianças não deixavam de ir... De alguma forma, a comunidade
confiava na gente.
O preço mais alto que pessoalmente
paguei foi o de tentar dar um caráter laico para o projeto. Não
evangelizaríamos ninguém. Não era trabalho de catequese. Nenhuma criança ou
seus pais eram obrigados a frequentar a Igreja para participar do projeto. O máximo
que fizemos foi uma Ceia de Natal. O coro das crianças do projeto cantou uma
das músicas da Cantata. Tiramos todos os bancos da Igreja. Alugamos mesas e
cadeiras. Fizemos uma grande ceia com as famílias das crianças do projeto.
Lembro-me disso com muito carinho.
Aquele foi também um ano
eleitoral. Ano difícil. O assessor de um candidato a vereador me abordou numa
tarde. Quis saber sobre o projeto. Sobre a personalidade jurídica. Falou e
falou. Por fim, disse que se eu conseguisse um CNPJ de OSCIP poderia destinar
uma emenda de um parlamentar de Brasília para o projeto. “Algo em torno de um
milhão por ano”, disse ele. Não fiz um pedido sequer. Ele pediu uma ‘oração’.
Orei por ele e sua família. Nunca mais o vi. Graças a Deus.
Fiz propaganda do projeto nas igrejas
da minha denominação no bairro. Certamente alguns aposentados, ou gente com
mais tempo, poderia nos apoiar. De um universo de treze igrejas, duas pessoas
vieram ajudar. Nenhuma igreja se dispôs financeiramente. Era preciso acreditar
muito.
O inusitado, então, veio nos
visitar. Estava na mesa de totó com a turma de adolescentes. A bolinha caiu
longe, no fundo do corredor do templo, ainda em obras. Lá, na última sala,
havia um sofá velho, onde dormia um gato ‘invasor’. Ninguém sabia, mas a sala
estava repleta de pulgas. O menino que foi buscar a bolinha saiu da sala
carregando dezenas. E ensinou o caminho para milhares.
Em poucos dias, todo o primeiro
andar do novo templo estava inundado de pulgas. O projeto foi suspenso por
quase um mês. Tentamos de tudo: veneno, oração, dedetização amadora e
profissional. Por fim, com muita perseverança e K-Othrine, conseguimos vencer.
O pior de tudo foi ouvir, de membros de outras
Igrejas: ‘Pastor, acho que isso é espiritual’.
...
O que pensar diante de tal
declaração? Gente com ensino superior, de igreja grande, repetindo a cantilena
e me olhando como se tivessem uma ótima explicação para o fenômeno, surpresos
com minha indiferença.
As pulgas não venceram o projeto.
Não me desanimaram. Não desanimaram o povo da Igreja.
A falta de apoio de gente ‘graúda’,
endinheirada e instruída, sim.
Num daqueles anos fui pregar na
maior Igreja do bairro, que havia organizado nossa Igreja há quase trinta anos.
Era de lá o pastor que profetizou que nossa igreja se tornaria um cabaré. Eram
de lá os que defendiam a tese das ‘pulgas espirituais’. Num dado momento da
pregação, desabafei: ‘Vocês têm até elevador. Lá em cima no morro, estamos sem
banheiro’.
Depois disso, naquela Igreja, não
me chamavam nem para fazer oração silenciosa.
Em igreja-mãe não dá pulga, irmão! La, elas nem conseguiriam sugar o sangue de membros mão-de-vaca e de pastor língua-de-trapo. Lá, hino do Cantor Cristão é cantado ao som de cuíca feita com o couro do "invasor". Que ad-oração silenciosa!
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