quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Pastores e bilhetes debaixo da mesa











Nós, humanos, somos um monumento ao desequilíbrio, à dualidade, aos paradoxos. Amor e ódio. Apego e desapego. Indiferença e preocupação. Fé e incredulidade.

A espiritualidade típica das igrejas de cunho puritano-pietista-evangelical tenta negar esses antagonismos, dando à vida um equilíbrio matemático. O sistema de crenças parece perfeito. Parece responder a tudo. Parece manter a viagem tranquila. Mas, quando a realidade nos faz questionar, o castelo de areia desaba.

Corria o ano de 2009. Por ironia do destino, presidi uma comissão que cuidou de um trabalho evangelístico autodenominado ‘Cruzadas’. Eu sei que não poderia haver nome pior. Uma organização do sul dos Estados Unidos, que recruta voluntários para uma semana de ‘impacto evangelístico’, com associações de Igrejas. Eu presidi o grupo de oito igrejas, do nosso bairro, que aderiram. Receberíamos gente de todo o Brasil e, sobretudo, bolivianos.

Quem acompanha este blog, sabe que o pastor da maior igreja do bairro havia ‘profetizado’ a transformação da igreja que eu pastoreava em cabaré. A comissão da Cruzada decidiu solicitar o templo daquela igreja, grande e com estrutura, para o culto de abertura da semana evangelística.

Essa brincadeira levou um ano de preparação. Diversas reuniões. Uma em Resende. Um retiro em Areal. Em nenhum desses eventos aquele pastor estava. Nem nas diversas reuniões que aconteceram na igreja dele, onde a Associação tinha sua sede.

Noite do culto de abertura. Lá vou eu para o púlpito daquela igreja. Comigo, a secretária nacional de Cruzadas e diversos membros da comissão local. Entre eles, um pastor que havia sido membro daquela igreja. Saíra de lá brigado com o pastor-profetizador-do-cabaré. Ele era o membro da equipe responsável pela música e regeria os hinos durante o culto. Regeu o primeiro e se sentou na primeira fila.

Alguns minutos depois de iniciado o culto, o pastor-profetizador-do-cabaré me enviou um bilhete. Um pequeno pedaço de papel, escrito por um terceiro, que dizia: “O pastor Joe manda avisar que o Jaspion (ele não chamou o desafeto de ‘pastor’) está proibido de subir ao púlpito dessa igreja”. Tentei avistar o pastor Joe, mas ele não estava no templo.

Um mal estar tomou conta de mim instantaneamente. Fiquei sufocado pela responsabilidade de continuar dirigindo o culto, ainda com a incumbência de tomar uma atitude em relação ao pastor Jaspion. Ele estava do meu lado e notou meu desconforto. Ficou desconfiado. Decidi lhe mostrar o bilhete e ele resolveu permanecer sentado, não regendo os outros hinos.

Para mim, a semana de evangelismo acabava ali. Como seria possível organizar e mobilizar tanta gente para, por fim, termos crentes capazes de produzir desafetos e de lhe negarem acesso ao púlpito. Não sabia, não quis saber e continuo não sabendo o que aconteceu entre aqueles dois no passado. Quem tinha razão na briga ou não. Aquela noite representava um desejo de mudança, de ver um novo tempo no bairro. Foi o tempo, na verdade, de eu descobrir que isso não existe.

Falar do amor de Deus, domingo após domingo, durante anos. Liderar uma grande igreja. Pregar em diversos lugares. Viajar o mundo. Conhecer gente. E continuar capaz de profetizar o cabaré. Continuar capaz de mandar bilhete para tirar desafeto do púlpito. Castelos de areia.

Nenhum de nós, certamente, está acima do bem e do mal, ou é incapaz de, vez por outra, cometer ou reproduzir injustiças. Isso, no entanto, não faz parte do óbvio na vida de um pastor tradicional. Ele é visto – e muitas vezes se coloca – num lugar de excelência. De santidade. De exclusividade. De ‘unção especial’. De ‘Vox Dei’. E assim, como se não fosse nada, manipula o que se pode ver de si.

Meu maior medo sempre foi o de, ao me valer da minha posição de pastor, usar a Bíblia para atacar alguém, fazer críticas pessoais, abusar do ‘poder’. Sei que, eventualmente, até sem querer, acabei fazendo isso. Mas posso me orgulhar de nunca ter feito de forma pensada, planejada, orquestrada, desejada. Levantar a mão contra alguém, fazendo uso de privilégios, de relações, de bilhetes debaixo da mesa. Graças a Deus.

Em 2009, eu tinha 27 anos. Tentava, desesperadamente, encontrar um modelo de igreja/pastorado que se adequasse à realidade da minha comunidade e que fosse, obviamente, compatível com as minhas constantes mudanças de visão. Tentei. Muito. Só Deus sabe o quanto. Lutei, muitas vezes de forma solitária, errando e acertando. Até que, movido por um complexo conjunto de fatores, resolvi desistir daquele ambiente. Daquela caminhada. Escolhi/fiz/faço/farei outros caminhos.

Sei que muitos bilhetes ainda correm debaixo das mesas. Quanto maior a Igreja, maiores as chances de disputa de poder, de falência ética, de degradação. Penso que assim também acontece em diversas organizações. Mas o ‘orgulho’ do fundamentalismo é, justamente, julgar-se o melhor, superior, único, divino. Tão mortal como qualquer outro.

Fico pensando na profecia do pastor. Ela não se cumpriu. Pelo menos, não lá na nossa pequena Igreja. Ainda assim, tenho a ligeira desconfiança de que um cabaré receberia Joe e Jaspion de braços e pernas abertas.

Um comentário:

  1. Prezado Leonardo, é tão perceptível quanto profunda a tua sinceridade. Gostei deste texto e o partilho com meus amigos e professores de Teologia. Também tenho um blog, onde, segundo um grande Mestre assim me disse: "Escrever é uma forma de libertação!" Paz e Bem.
    Ailton

    www.escritosemtempos.blogspot.com.br

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