Uma boa parcela da Igreja era de
negros.
Gente que veio de longe. De
outras cidades. De outros estados.
Gente que trabalhou demais
comigo. Com quem compartilhei lágrimas e sorrisos. Que abriu as portas de casa
para mim. Irmãos.
Sempre gostei de ouvir suas
histórias. De conhecer um pouco de suas vidas, da trajetória pessoal.
Um diácono, fundador da Igreja,
meu braço direito, que já passava dos sessenta anos, tinha uma doença rara no
pulmão. Consequência de anos lavando navios com jato de areia. O médico tinha
lhe dado meses de vida quando descobriu. Ele foi aposentado por invalidez, e
agora ‘trabalhava para o Senhor’. E como trabalhava. Desde o diagnóstico,
passaram-se dez anos. E ele estava lá. Com algumas restrições, mas feliz.
Fazendo de tudo.
Donato viera de São Fidélis,
norte fluminense, na década de 60, morar com parentes, numa favela do Rio. Fez
bico de servente de pedreiro. Na casa de uma ‘patroa’, precisou ‘aliviar o
ventre’. Alguém lhe indicou o banheiro. Ele entrou e, rapidamente, saiu. E saiu
reclamando que a louça estava limpa. E, com a louça limpa, não poderia defecar
ali, pois sujaria tudo. Então, uma boa alma resolveu apresentar o banheiro e o
vaso sanitário para Donato. Corriam os anos 70 e eles não se conheciam.
Donato se casou com Rose. Viviam
de aluguel, num terreno no morro. Quando se converteram, Rose recebeu a
proposta de ser zeladora da Igreja. O terreno da Igreja era grande. Foi
construída uma pequena casa, e eles passaram a viver ali. Ficariam naquela casa
por mais de duas décadas.
Rose é do Espírito Santo. Nasceu
numa fazenda em que seu pai trabalhava e vivia. Ouvi uma história de sua infância
que nunca mais vou esquecer. Seu pai plantava e colhia para o patrão. Era o patrão quem escolhia, da colheita, o que ficaria para a família de Rose. Boa parte ia
para a Casa Grande, como ainda chamavam, e outra para ser vendida no centro da
cidade. O que sobrasse, ficava com a família.
Numa manhã de muito trabalho, o
pai de Rose caiu do carro de boi. Bateu com a cabeça. Ficou sem poder trabalhar
por um bom tempo. O dono das terras foi ‘visitar’ o doente. “Francisco, onde
estão seus filhos?”. Eram cinco. Três mulheres e dois homens. “Estão na escola,
patrão”. O patrão gargalhou e respondeu: “Pois trate de colocar a negrada na
lavoura, se você não pode trabalhar, eles têm que dar conta!”. Rose e seus
irmãos só voltaram a estudar na idade adulta.
...
Essas histórias foram contadas
num pequeno grupo de estudos. O tema era “O Bom Samaritano”. Não sei por que
cargas d’água entramos a discutir questões de negritude. No grupo, estava uma
mulher, negra, contrária à política de cotas. Ela dizia que os negros não eram
inferiores para precisar disso.
Depois da história de Donato e
Rose, ninguém precisou argumentar mais nada. Foi ali, naquele chão sagrado da
vida, num rincão perdido do Rio, que os olhos se abriram.
Olá Leonardo.... então, sempre me questionei se havia espaço na Igreja para este debate, na verdade, em relação à todas as coisas que ocorrem na sociedade, porque ao que tenho visto ao longo de anos é que há uma descontextualização social imensa da Igreja em relação à sociedade. Não vejo discussões sobre movimentos sociais, sobre necessidades coletivas... o que vejo claramente são interesses próprios acima de tudo e o império do capitalismo. Acredito que a leitura do novo testamento está invertida, e com um fundamentalismo gigantesco, onde cada denominação defende a qualquer custo a sua interpretação bíblica, que claro, é única... enfim.. são tantas questões, mas fiquei contente a ver um novo debate surgindo através dessa leitura. Obrigada por compartilhar.
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